Com a autorização da revista internacional de improviso Status, Luana Proença e Davi Salazar traduzem e gravam em português o conteúdo mensal da revista.
SIM, existe uma revista mensal sobre Impro que questiona e valoriza o que fazemos, E seu conteúdo é disponibilizado em português AQUI por escrito, e em áudio em nosso PODCAST no Spotify: Revista Status - PT.
A revista STATUS é publicada mensalmente e virtualmente em espanhol, inglês, italiano e francês. Informações e assinaturas: https://www.statusrevista.com/.
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por Feña Ortalli
“Claro que a direita vai usar tudo isso para continuar a campanha contra mim e contra a Margarita (Xirgu), mas não importa. É quase conveniente que o façam, para saberem de uma vez por todas, os campos que pisamos. Certamente, na Espanha não se pode ser uma pessoa neutra”.
Federico García Lorca (Carta à sua mãe, 1935)
Quando Federico escreveu estas palavras, o golpe de 1936 na Espanha já estava no forno. O golpe seria seguido pela Guerra Civil e 40 anos de ditadura fascista.
Hoje, o mundo enfrenta uma nova onda reacionária em que a extrema-direita passa a ser não só validada como opção democrática, mas também passa a participar ativamente dos governos locais e nacionais em diferentes latitudes.
Na Espanha, os avanços sociais históricos em questões de equidade, feminismo e ambientalismo estão sendo comprometidos. As garras do fascismo atacam novamente, dispostas a se livrar de tudo que não caiba em sua estreita visão de mundo.
Mas Feña, o que tem a ver a impro com tudo isso?
Tem muito a ver.
A maioria dos espetáculos de impro no mundo está associada a um “humor neutro” que não ofende, que cai sempre de pé. Não há compromisso, portanto não há confronto. Há falta de intensidade, falta de opinião e responsabilidade.
Você é de direita e gosta do que está acontecendo no mundo? Ótimo, continue fazendo o que está fazendo.
Você não se importa com nada porque isso não te afeta diretamente? Ótimo, continue fazendo o que está fazendo.
Você se considera de esquerda, feminista, ambientalista? Então prove isso no palco.
Você se posiciona contra a homofobia, o racismo e a discriminação? Então o faça.
Sei que pode parecer exagero, e talvez eu esteja superestimando nosso real poder, mas se você está se preocupando com o que está acontecendo no mundo, no seu país, na sua região, na sua cidade, na sua vizinhança... então faça algo a respeito. O que estiver a seu poder.
Meu campo de batalha é o palco e, minhas armas, minhas palavras.
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BIO
Aleksandr Ostrovsky
por Feña Ortalli
Aleksandr Nikolayevich Ostrovsky (1823-1886) foi um dramaturgo russo frequentemente considerado o maior representante do período realista russo.
Ostrovsky estudou direito na Universidade de Moscou e trabalhou como escriturário no tribunal de menores de Moscou. Mas sua verdadeira paixão estava em escrever peças e, em 1847, ele completou sua primeira, chamada "Cenas de felicidade familiar" (“Kartiny semeynogo schastya”). Em 1850, ele escreveu "The Bankrupt", que causou grande agitação porque expôs as práticas obscuras dos mercadores de Moscou e a infidelidade de suas esposas. A peça foi banida por 13 anos!
No entanto, as contribuições mais significativas de Ostrovsky foram retratar a vida da classe mercantil russa. Uma de suas obras-primas, “A pobreza não é desgraça” (“Bednost ne porok”), foi escrita em 1853. Outra obra notável, "A Donzela da Neve" (“Snegurochka”), foi posteriormente adaptada para uma ópera por Nikolay Rimsky-Korsakov.
Ostrovsky foi incrivelmente prolífico e escreveu um total de 47 peças originais com um total de 728 personagens, que quase sozinho formaram o repertório nacional russo. Suas obras são apreciadas por seu desenvolvimento de caráter habilidoso e uso de dialeto. Elas continuam a ser amplamente lidas e executadas na Rússia.
Ele foi muito elogiado por sua profunda compreensão da psique russa, e suas personagens bem desenvolvidos se tornaram as favoritas entre quem atuava e público. Curiosamente, em 1859, o escritor Nikolai Dobrolyubov observou que muitas frases cunhadas por Ostrovsky foram avidamente adotadas pelo povo e se tornaram ditados populares.
Em 1874, Ostrovsky co-fundou a Sociedade de Compositores de Arte Dramática e Ópera Russa, uma organização que lidava com questões legais e fornecia apoio financeiro às pessoas autoras.
Profundamente preocupado com a crise enfrentada pelo teatro russo na década de 1870, Ostrovsky desenvolveu um plano abrangente para sua reforma radical. Em 1881, ele apresentou dois relatórios a um comitê governamental especial em São Petersburgo: "Sobre a situação da arte dramática moderna na Rússia" e "Sobre as necessidades do teatro imperial". Embora a maioria de suas sugestões tenha sido ignorada, a ideia de estabelecer o primeiro teatro independente em Moscou atraiu o czar, e logo teatros privados começaram a surgir em toda a Rússia.
Infelizmente, ao contrário de seus contemporâneos Tolstói, Dostoiévski e Turgenev, as obras de Ostrovsky são relativamente desconhecidas fora dos países de língua russa.
Em 2 de junho de 1886, Ostrovsky faleceu em sua casa enquanto trabalhava em sua escrivaninha na tradução de "Antônio e Cleópatra" de William Shakespeare.
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ENTREVISTA
O que é Impro?
Para comemorar nosso 12º aniversário passamos por todas as nossas edições anteriores (144) e buscamos nossas definições favoritas de impro. Qual delas é a sua favorita? Qual é a sua definição pessoal? Envie para info@globalimpro.com e postaremos em nossas redes sociais.
“A oportunidade de seguir meus impulsos com absoluta sanidade; embelezar o que sinto em um espetáculo; e claro, contar histórias”
Pilar Villanueva (Status #22. Abril de 2013)
“Confiar nas suas ideias, confiar nas suas parcerias e seguir a diversão”
Will Luera (Status #25. Julho de 2013)
“Criar histórias a partir do risco, do frenesi, da generosidade, da diversão, da alegria, da surpresa. Tudo sob a premissa de que o que fazemos é teatro, e teatro é confronto, drama. Um fractal artístico da vida”
José Luis Saldaña e Omar Medina (Status #35. Maio de 2014)
“Impro é o que acontece quando deixamos algo mais poderoso e bonito aparecer porque nossa vontade não interveio”
Beto Urrea (Status #36. Junho de 2014)
“A arte do efêmero, do imediato... do salto que damos sem saber a que distância estamos do chão”
Encarni Corrales (Status #37. Julho de 2014)
“É uma escuta total que você não encontra em nenhum outro lugar”
Mariana Palau (Status #44. Fevereiro de 2015)
“É o lugar onde posso estar errado. O lugar onde posso expressar minha personalidade ao lado das outras pessoas. O lugar onde me sinto 100% uma pessoa do teatro”
Mico Pugliares (Status #62. Agosto de 2016)
“É um sonho partilhado e um caminho interior”
Rob Norman (Status #63. Setembro de 2016)
“A improvisação é um motor. Uma forma de estar na Terra. É um palco e uma inteligência vital que dá a leveza da certeza de que vai dar tudo certo”
Danna Liberman (Status #66. Dezembro de 2016)
“Se o teatro está no tempo verbal Presente, a improvisação está no tempo verbal Presente-perfeito”
Rafa Villena (Status #69. Março de 2017)
“É uma forma de arte com uma infinidade de opções para descobrir”
Kaisa Kokko (Status # 72. Junho de 2017)
“A Impro é um espelho do que somos e do que poderíamos ser. Ela contém os princípios para tornar esta sociedade um lugar melhor”
Martina Pavone (Status #75. Setembro de 2017)
“Impro é uma terapia. Vida. Uma celebração da amizade. Uma viagem de amor”
Joe Bill (Status # 79. Janeiro de 2018)
“É confiar em suas parcerias e descobrir essa confiança à medida em que avança”
Kiki Hohnen (Status #81. Março de 2018)
“Impro é um dos conceitos artísticos mais intrigantes que permitem a criação coletiva instantaneamente e a ida além das limitações culturais”
Marie Wellmann (Status #87 setembro de 2018)
“Impro é a arte de revelar o óbvio”
Piera Del Campo (Status # 99. Setembro de 2019)
“Improv é como um elástico. A gente puxa o elástico para criar tensão, aí a gente solta a tensão e ela sai em risadas, ou lágrimas, ou “aww” ou “ah não!”. Podemos puxar e liberar a tensão rapidamente, como se estivéssemos atirando um elástico pela sala. Ou podemos brincar com o elástico, levando nosso tempo para esticar e liberar a tensão em vários níveis, devagar e rapidamente, mais apertado ou mais solto, ao longo de uma cena ou espetáculo”
Stacey Hallal (Status # 104. Fevereiro de 2020)
“Pode ser uma ferramenta para introspecção e me ajudar a verificar coisas em mim – ‘que tipo de personagem estou interpretando? Por que estou fazendo essa escolha? Por que essa emoção está surgindo agora?’”
Balasree Viswanathan (Status # 110. Agosto de 2020)
“O guarda-roupa em ‘As Crônicas de Nárnia’. Há um mundo inteiro lá fora - você só precisa destrancar a porta”
Pippa Evans (Status # 117. Março de 2021)
“Uma técnica generosa, divina, que tem um potencial maior do que podemos ver”
Javier Monge (Status # 123. Setembro de 2021)
“É um quebra-cabeça e uma obra de arte. É tanto a mente grupal quanto o coração grupal. Descontroladamente libertadora, especificamente vaga, cheia de contradições e sempre, sempre enlouquecedoramente mágica”
Aih Mendoza (Status # 124. Outubro de 2021)
“É a arte de fazer as coisas acontecerem”
Nils Petter Mørland (Status # 135. Setembro de 2022)
"Uma metodologia, abordagem ou série de técnicas que são aplicadas à criação de conteúdo onde a totalidade do resultado ou a definição exata do resultado não é totalmente conhecida"
Andrew Hefler (Status # 142. Abril de 2023)
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DICAS E TRUQUES
Cenas com Side Coaching
por Laura Doorneweerd-Perry
Eu acredito que podemos ter mais tipos diferentes de docentes de improv. Para lhes incentivar a começar, ou para melhorar seu ensino, todos os meses compartilharei uma dica e um exercício.
Oh, side coaching… É provavelmente o assunto sobre o qual recebo mais perguntas de colegas docentes. Eu devo? Quando? Quanto? Mas e se? E muito mais.
Pessoalmente, adoro o side coach. Mas tento estar atenta para não cair na armadilha de dirigir a cena. Basicamente, é a diferença entre encorajar uma pessoa jogadora em uma direção que ela já está tomando e manipulá-la na minha direção preferida. Quero dar permissão às pessoas que estão a aprender para confiar em seus instintos. E palavras como “sim”, “mais”, “isso” podem levá-las até lá. Ou, se eu sentir que dirigir vai ajudar, direi “escute”, “se afete” ou “olhe para as pessoas que são suas colegas de cena”.
Espero que isso pareça óbvio: você pode ser uma ótima pessoa docente sem nunca realizar side coach. Algumas pessoas improvisadoras dizem que adoram o side coaching durante as suas cenas, mas o aprendizado pode acontecer de muitas maneiras diferentes. E só porque o side coaching pode ser confortável para algumas das pessoas estudantes (não para todas), não significa que é assim que elas aprendem melhor.
Recentemente, treinei um professor iniciante que me disse que não tinha certeza se seu side coaching era valioso. Sugeri a ele que dissesse coisas um pouco mais como uma pessoa incentivadora e menos como uma especialista.
Por exemplo, quando uma cena termina e, como docente, você acha que outra escolha poderia ter funcionado melhor, você sempre pode encarar a situação sob o ponto de vista de um experimento: “Vamos tentar uma outra coisa. Que tal começar de novo de [...] mas dessa vez você [...]”.
Ao usar a palavra “tentar”, você pode descobrir junto com a turma se uma outra estratégia funciona melhor. Se assim for, ela aprendeu alguma coisa. Se não, vocês em conjunto aprenderam alguma coisa. Se você fizer isso com bastante frequência, realmente pode melhorar suas habilidades como docente e estimar ainda melhor o que é necessário para o aprendizado. É uma vitória para todo mundo.
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GENÉTICAS
Duo Impro
Sessão coordenada por Luana Proença
Algumas das práticas pedagógicas comuns na América Latina que sempre me inspiraram em Teatro são as chamadas Desmontagens Cênicas ou os estudos da Genética Teatral. Uma abertura dos processos de criações onde eles são “desfeitos” parte a parte para que possamos ver como se deu a junção daquela obra. Assim, todos os meses eu vou dar espaço para grupos e artistas abrirem suas criações para uma partilha inspiradora. Se você quiser partilhar sobre o seu processo, entre em contato comigo, Luana Proença: luanamproenca@gmail.com
Zeca Carvalho, improvisador, encenador e professor brasileiro radicado em Coimbra, Portugal partilha conosco a criação e as lições que o seu grupo Coimbra Impro teve com o espetáculo “Duo Impro”. Conheci Zeca em Lisboa em 2018 como improvisador brasileiro e pesquisador acadêmico em Portugal. O seu trabalho está sempre a pensar no impacto e efeitos políticos que as artes performativas têm e impactam, destacando-se no Teatro de Improvisação. Com vocês: Zeca Carvalho e o “Duo Impro”.
DUO IMPRO por Zeca Carvalho
Direção: Zeca Carvalho
Criação: grupo Coimbra Impro
Elenco: Alexandra Santos, Anabela Rodrigues, André Pereira, Andreia Domingues, Chico Guazzelli, Inês Machado Bastos, João Damasceno, João Pedro Branco, Marli Silva, Wilson Domingues e Zeca Carvalho
O espetáculo “Duo Impro” fez sua estreia às 21 horas de 18 de março de 2023, no Auditório Student Hub do edifício da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, por ocasião da noite de encerramento da Semana Cultural da Associação de Pesquisadores e Estudantes Brasileiros em Coimbra (APEB). Participaram da estreia 11 performers do grupo Coimbra Impro – seis homens e cinco mulheres entre 21 e 56 anos de idade. O espaço para a apresentação não contou com nenhum recurso de cenografia, iluminação ou sonorização, tendo sido utilizadas camisetas negras com o emblema do grupo à guisa de figurinos. O espetáculo foi coletivamente desenvolvido, mas dirigido por mim, que assino como encenador as produções do grupo, cujas pessoas integrantes, majoritariamente, tiveram seu primeiro (e por vezes único) contato com o teatro de improviso através de mim mesmo, devido à escassez de pessoas profissionais ligadas à cena impro na mais tradicional cidade universitária de Portugal.
Formado em janeiro de 2022 e residente na Casa das Caldeiras, restaurante e centro cultural vinculado à Universidade de Coimbra, o grupo Coimbra Impro acredita ser o primeiro coletivo de teatro de improviso estabelecido na região centro de Portugal. Com performances regulares em outras importantes casas de espetáculos da cidade, tais como o Grêmio Operário de Coimbra e o Atelier A Fábrica, o grupo conta com três espetáculos em seu repertório: “Truelo Improvisado”, “Sete Cenas e Um Fino” e “Duo Impro”. Em janeiro de 2023, o Coimbra Impro apresentou-se no VII Festival de Teatro Deniz Jacinto; em 1º de abril, participou como convidado do V TEDx Universidade de Coimbra; e, na mesma data, um sábado, estreou o primeiro Campeonato de Teatro de Improviso de Coimbra, um torneio temático de Teatro-Esporte denominado “A Batalha por Coimbra”, com oito equipes de três a cinco participantes.
Em sua divulgação, “Duo Impro” é apresentado como um espetáculo de cenas improvisadas nos formatos médio e curto, que parte de cenas integralmente performadas em dupla ou que têm nas duplas de pessoas improvisadoras seu motor de criação. Partindo de disparadores como palavras, cenários ou frases, em cada cena as duplas de performers abrem caminho para histórias que podem contar com o elenco todo do espetáculo ou chegar a um desfecho apenas com a dupla inicial.
Desenvolvida em grupo e ensaiada durante aproximadamente um mês e meio, em encontros semanais, a estrutura do espetáculo baseia-se em cinco jogos de improvisação que tendem para o formato médio (entre cinco e oito minutos de duração), e que convergem para uma cena que unifica as anteriores, à qual se segue uma rodada final de monólogos, em estilo livre. O espetáculo pode não primar pela originalidade, mas tem na força e na energia do grupo Coimbra Impro seu grande diferencial. Como parte do programa de treinamentos e apresentações a que venho submetendo as pessoas performers do grupo desde sua fundação, “Duo Impro” obedeceu a dois objetivos estratégicos.
De característica intrínseca ao grupo Coimbra Impro, o primeiro objetivo relacionava-se a promover o início da transição de nossas pessoas improvisadoras desde as cenas em formato curto até as estruturas mais sofisticadas em formatos médio e longo. Em razão de meus primeiros anos no teatro de improviso, na cidade do Rio de Janeiro, terem sido dedicados quase que exclusivamente às competições de Teatro-Esporte, sinto-me mais confortável em abordar a formação de pessoas improvisadoras iniciantes por intermédio dos jogos de tiro, marcados pelo fluxo pronunciadamente espiralado e pelo ritmo alucinadamente vertiginoso. Depois de um ano inteiro dedicado ao short form, era chegado o momento de treinar as pessoas componentes do grupo a rebuscar suas propostas, desacelerar a contracenação, escavar além da superfície e perseguir um maior equilíbrio entre expressividade e performatividade. Avançar do short form para o medium form representou uma primeira escolha óbvia. A segunda obviedade estava em cristalizar o protagonismo da dupla como unidade criativa ótima, impedindo que a sucessão de tags multiplicasse as personagens e as propostas, sem aprofundar nenhuma delas.
O segundo objetivo relacionava-se a uma demanda extrínseca: possibilitar que o público de Coimbra, familiarizado com as formas estilísticas teatrais clássicas, com algumas iniciativas em performance art, com o teatro-dança e mesmo com a stand up comedy – onipresente nos bares da cidade –, mas ainda desacostumado ao teatro de improviso, pudesse ter um contato com outra alternativa além dos shows regulares de short form apresentados pela Coimbra Impro desde sua estreia na Casa das Caldeiras. Duas produções em long e medium form já haviam sido dirigidas por mim como espetáculos de formatura em improvisação teatral em grupos universitários – respectivamente, “Haroldo Vai a Recurso”, um Harold encenado em 2021 no Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC) e “(As)Simetrias do Caos”, performado em 2023 no Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra (CITAC) – mas ambos haviam ficado restritos a uma audiência naturalmente relacionada às artes cênicas. “Duo Impro”, que foi apresentado para uma plateia de quase 100 pessoas, representou uma forma mais sofisticada de dialogar com um público mais eclético e abrangente.
A despeito de sua estrutura pouco rebuscada, nosso espetáculo apresenta um certo atravessamento intercultural, em decorrência das origens diversas de suas partes constituintes. Os jogos e exercícios cujas dinâmicas inspiraram as cenas de “Duo Impro” me foram pessoalmente transmitidos por mestres como: Devin Bockhart (Estados Unidos), Keng-Sam Chane Chick Té (Ilha da Reunião), Mico Pugliares (Itália) e Shaun Lowthian (Reino Unido). Para capacitar meu elenco a entregar ao público seus monólogos finais, recorri aos treinamentos aprofundados sobre monólogos em teatro de improviso aos quais fui submetido pelos meus professores Cláudio Amado (Brasil) e Omar Argentino Galván (Argentina). A reação que obtivemos em nossa estreia – seguiu-se ao espetáculo uma discussão pública de aproximadamente 20 minutos com o público – evidenciou os acertos de nossas escolhas, mas também fez emergir problemas bastante complexos, que motivaram as pessoas participantes do Coimbra Impro a repensar a razão de existir de nosso coletivo de criação.
Sem a proteção das espontaneidades desculpáveis do short form, e sujeitando-nos a abrir o debate com as pessoas espectadoras, o grupo foi confrontado com questionamentos que denunciavam preconceitos e opressões presentes em nossas cenas, mais especificamente em duas ocasiões, nas quais imperou o humor fácil e sexista preferido pelos sistemas de humor alinhados ao heteropatriarcado. Ao final da estreia de “Duo Impro”, ouvir diretamente de nossa audiência seu desconforto com soluções improvisadas que, em última instância, contribuem para reforçar a dominação patriarcal, acelerou a necessidade de edificar, no Coimbra Impro, uma agenda sociopolítica que venha a atender aos valores do grupo, à necessidade de investigar os desequilíbrios que se manifestam quando são testados os limites do humor e, por último, a engrandecer a luta contra as opressões impostas pela modernidade ocidental, quais sejam o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado. A questão colonialista mostrou-se especialmente sensível, em decorrência de nosso coletivo encontrar-se estabelecido em uma região com imensa população periférica cigana e africana, bem como pelo fato de o Coimbra Impro ser composta por uma mistura de performers de origem portuguesa e brasileira em uma proporção aproximada de 70/30.
Uma semana depois da estreia de nosso “Duo Impro”, marcamos uma reunião para debater o desenvolvimento de uma agenda sociopolítica para o Coimbra Impro. Em discussão, temas como racismo, xenofobia, homofobia, fascismo, luta de classes e machismo emergiram a partir de calorosos embates verbais pautados pelo antigo questionamento acerca das fronteiras da dramaturgia que emerge espontaneamente quando flertamos com o nonsense, com o grotesco, com o absurdo: “afinal, se fazer humor é gozar com o lado opressor, então não vale fazer piada com o oprimido?”. Entretanto, os portais do inferno foram abertos quando se questionou “mas quem é o ser opressor e quem é o oprimido?”. A discussão escalou até o ponto em que algumas pessoas se retiraram da sala e retornaram somente quando passamos a listar nossos próximos espetáculos.
Exatamente uma semana depois deste fato, um ensaio marcado para estender-se por cinco horas de duração durou apenas uma hora e meia, com a recuperação dos pontos sensíveis discutidos na semana anterior, agora com os exemplos advindos de nossa primeira noite do Campeonato de Teatro de Improviso de Coimbra, além dos pontos não resolvidos do nosso “Duo Impro”. Desta vez, algumas pessoas deixaram o espaço de ensaios para não retornar. Como diretor, tenho presentemente a sensação de que contamos com um conjunto de pessoas, mas não com um grupo propriamente dito. Nossas vitórias são imensas em pouco mais de um ano de existência, mas as próximas conquistas não serão tão facilmente obtidas.
A experiência do Coimbra Impro com seu primeiro espetáculo em medium form, bem como os eventos que se seguiram à estreia de “Duo Impro”, desde o debate com o público até os ensaios subsequentes, deixa algumas importantes lições, que extraio e/ou reforço a partir desta única experiência empírica, vis-à-vis minhas vivências anteriores: (1) mesmo que temas de cunho sociopolítico não sejam sugeridos pela plateia e nem debatidos pelas pessoas performers, eles irão emergir no calor da ação; (2) a chance de que gatilhos e temas sensíveis possam aparecer na dramaturgia espontânea parece aumentar em função da complexidade dos formatos apresentados e da quantidade de performers no elenco; (3) não se pode pretender passar da comicidade ligeira dos jogos de short form para estruturas médias ou longas sem acessar previamente temas de âmbito social, político, cultural e econômico; e (4) qualquer grupo de teatro de improviso precisa manter constantemente viva e vigorosa a discussão acerca do mundo que nos cerca, assim como que papel desejamos exercer como artistas intervenientes em nosso meio.
Não obstante as poucas e raras posições contrárias – muitas das quais emitidas por pessoas que não se dedicaram suficientemente ao estudo de conceitos fundamentais em artes performativas –, impro é performance e impro também é teatro. Não faltam referências acerca de tais afirmações. Assumindo o fenômeno como performance, entendo que a impro deve pretender apresentar-se essencialmente como co-participação, intervenção, engajamento, provocação, desafio ao sistema e ruptura com as formas artísticas hegemônicas. Compreendendo-se como teatro, a impro precisa obrigatoriamente assumir suas facetas estética e política em patamares equiparáveis de relevância.
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IMPROLECTORA
Estamos com vida pra caralho!
por Pamela Fonte
“La Vida es una Improvisación” (“A vida é uma improvisação”), de Piolo Juvera é um dos meus livros preferidos. Ponto. A leitura foi uma experiência que teve um impacto muito pessoal em mim. É um convite à coragem de se render, à coragem de deixar ir, para desfrutar de sua própria vulnerabilidade. A principal mensagem do livro é esta: a impro é mais do que uma disciplina de teatro, é uma forma de viver a vida. Assim como nossa história pessoal impacta a criação de nossas personagens e histórias; as regras e os ensinamentos da improvisação vão além do mundo do teatro. Vida e impro estão ligadas, e Piolo percorre essa narrativa com honestidade, abertura, generosidade e muita maestria.
Este é um livro íntimo, profundo, apaixonado e revelador. Em cada página você pode ler a paixão que Piolo Juvera tem pela impro. Não tenho certeza se é uma biografia narrada através de conceitos de impro ou um manual de impro expresso através de sua história de vida. O que tenho certeza é que sua contribuição é enorme, e lê-lo é uma experiência que vale seu tempo e energia. Suas páginas são carregadas de reflexões, anedotas, perguntas a quem lê e exercícios de impro. Juvera pula da vida para a impro e volta com uma graça única, típica de uma experiente pessoa contadora de histórias.
É uma viagem interessante pela vida privada do autor, uma história honesta, vulnerável e emocional. É uma jornada muito profunda e acho que podemos nos identificar com alguns (ou muitos) momentos de sua história. Piolo escreve sobre sua infância, sua família, migração, transformações, amores, desgostos e crises de insegurança, e os conecta com a técnica. Por exemplo, ele nos conta como se sentia pouco ouvido em sua família e como se tornava barulhento nos espaços sociais; para finalmente entender a importância do silêncio. Para explicar a relevância do presente na impro, ele nos conta sobre suas ansiedades e nostalgias, e sua experiência meditando na Índia. Ele narra a morte da mãe durante a pandemia para provar a importância ilimitada das palavras e a relevância das ações. Ele compartilha sua filosofia de vida e hábitos para nos mostrar que podemos criar a personagem que queremos, a partir do nosso verdadeiro desejo. Ele conecta o conceito de status com auto-estima e ego. Ele nos conta sobre seu divórcio através do conceito de plataforma. E assim, Piolo dança harmoniosamente em cada capítulo entre ideias conceituais, reflexões universais e histórias pessoais.
Além disso, o livro está repleto de referências e recomendações preciosas: literatura, música, autorias. Graças a Piolo comecei a ouvir “El Cuarteto de Nos” e a ler Brené Brown. Encontrei muitas referências a Omar Galván; e para meu prazer, várias canções de El Kanka. E os clássicos também estão lá: Del Close, Viola Spolin. Inclui ainda um conjunto diversificado de referências à cultura pop que animam a história transversalmente. É um livro longo, mas pode ser lido em um fim de semana porque é escrito de uma forma agradável e envolvente.
Eu confesso. Eu o li e reli várias vezes. Eu o consulto de vez em quando, mais para a vida do que para a impro. Para mim, é uma daquelas “leituras que levaríamos para uma situação de emergência”, onde posso encontrar conselhos e me identificar com questões trazidas por outra pessoa. São páginas nas quais posso mergulhar e através delas tomar consciência do meu naufrágio, tão humano e natural. Por um tempo, não me sinto tão sozinha, nem tão pessimista. Piolo me conecta com a intensidade da existência e me lembra que estamos com vida pra caralho!
Leia se:
Você precisa de inspiração
Você tem interesse na maravilhosa complexidade do ser humano
Você adora uma boa literatura e/ou impro
Seu maior valor:
Piolo escreve com identidade através de uma prosa honesta, elegante e aconchegante. Seu uso das palavras é refinado, artístico e lúdico.
Minhas partes favoritas:
Todas as histórias autobiográficas, as descrições detalhadas de eventos, sentimentos e pensamentos que o autor viveu. Suas reflexões filosóficas e sua ética admirável.
Minhas citações favoritas:
“Eu faço o que faço porque amo. Porque eu sou bom, mas quero ser melhor. Porque tenho pavor de fazê-lo e orgulho-me de cada vez que me atrevo a fazê-lo. Eu faço isso porque é a minha jornada. Porque é o que posso dar a mim e ao mundo. Porque é a minha parada, é minha arte”
“Improvisar é resolver, adaptar, decidir, confiar, aceitar, se jogar. É estar aqui e agora. Improvisar é construir um avião enquanto já estamos no ar. Improvisar é como desenhar o mapa enquanto vamos descobrindo o caminho. Improvisar é viver. E viver é improvisar”
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