Com a autorização da revista internacional de improviso Status, Luana Proença e Davi Salazar traduzem e gravam em português o conteúdo mensal da revista.
SIM, existe uma revista mensal sobre Impro que questiona e valoriza o que fazemos, E seu conteúdo é disponibilizado em português AQUI por escrito, e em áudio em nosso PODCAST no Spotify: Revista Status - PT.
A revista STATUS é publicada mensalmente e virtualmente em espanhol, inglês, italiano e francês. Informações e assinaturas: https://www.statusrevista.com/.
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INCLUSÃO E BOA IMPROVISAÇÃO SÃO A MESMA COISA
por Stephen Davidson
Na maioria das vezes, quando pensamos em Diversidade, Equidade e Inclusão, pensamos em coisas chatas como finanças, ou em todo o esforço extra que teremos de fazer, ou em como a política pode ser cansativa. Mas e se ensinar improv de forma inclusiva também significar ensinar improv boa e divertida? Muitos dos problemas que as pessoas relatam como questões de diversidade também são apenas improv ruim - personagens estereotipadas, não conseguir dizer uma palavra, sentir-se desconfortável nas cenas, não conseguir mencionar uma referência cultural se nem todas a pessoas entendem. Portanto, aqui estão alguns exercícios e dicas para fazer uma boa improv que também seja mais inclusiva. 1. Personagens em camadas. Você acha que todas as personagens femininas do seu espetáculo estão lá apenas para arranjar um namorado e parecerem bonitinhas? Praticar personagens em camadas é uma ótima maneira de ajudar com isso, e também tornará suas cenas muito mais atraentes. Tente fazer algumas cenas em que você conscientemente dê à sua personagem uma camada extra - talvez um hobby ou trabalho sobre o qual ela fale, vendo-a em situações diferentes para que possamos ver como ela age, contando uma lembrança que a personagem tenha, uma opinião forte que ela tenha, uma peculiaridade boba. Só por diversão, tente fazer algumas que vão contra o estereótipo - por exemplo, um operário muito masculino que está cuidando de um bebê na cena (e isso não é terrível). 2. Falar pouco. Você acha que algumas pessoas improvisadoras do grupo dominam o espaço auditivo? Pode ser realmente complicado ajudar todas as vozes a serem ouvidas, especialmente se algumas pessoas falam um segundo idioma, são neurodivergentes ou tímidas. Tente praticar ofertas mais físicas e emocionais - por exemplo, iniciar uma cena com trabalho de objetos (e fazê-lo bem), dizer em voz alta como acha que a outra personagem está se sentindo, ter reações emocionais nas cenas, deixar que as emoções da sua personagem sejam alteradas pela cena. Até mesmo os espetáculos de comédia mais verbais se beneficiarão de uma melhor atuação e do trabalho de objetos, e então as pessoas a atuar que são menos falantes terão espaço para brilhar. 3. Estranho! Você já participou de uma cena em que não se sentiu confortável e não conseguiu sair? Quando nos sentimos desconfortáveis no palco, o público vê e também se sente desconfortável. É uma ótima ideia praticar a saída de uma cena, da mesma forma que praticamos uma entrada em cena. Algumas improvs fantásticas podem acontecer quando uma pessoa jogadora é deixada sozinha no palco e, muitas vezes, quando uma personagem está chateada ou desconfortável, a coisa mais verdadeira que ela pode fazer é ir embora, como faria na vida real. Quando trabalhamos com consentimento na improv, costumamos dizer que se alguém não puder dizer não a você, o sim dessa pessoa não significa nada. O mesmo se aplica às cenas - todas devem querer estar lá. 4. Dizer o quê? É complicado fazer uma referência cultural que não seja a norma onde você improvisa? Algo que acontece muito na improv é o fenômeno da "mente de grupo", em que todas as pessoas no grupo tentam entrar na mesma frequência de onda para ajudar o espetáculo a transcorrer sem problemas. Há muitas coisas boas nisso, mas uma coisa ruim é que a mente do grupo geralmente reflete a maioria na sala. Portanto, se houver uma pessoa jogando que tenha uma origem diferente, fale um idioma diferente, tenha interesses diferentes, faça parte de uma subcultura (por exemplo, LGBTQ), seja neurodivergente, ela frequentemente terá que abandonar todas essas coisas interessantes sobre si para se encaixar na mente do grupo. Quando isso acontece, as cenas e os espetáculos que um grupo faz podem ficar um pouco iguais e entediantes, porque você pode prever muito do que vai acontecer. Para trabalhar com isso, experimente algumas cenas em que vocês conversem um pouco como artistas de antemão, incluindo coisas que sejam diferentes e interessantes para/sobre vocês. Certifique-se de que essas ofertas sejam recebidas com cordialidade e curiosidade (e talvez até com um surpreendente "eu também!") e tente incluí-las nas cenas. Trazer um pouco mais de si para o palco pode ser um pouco assustador, mas o público realmente se conecta com a autenticidade - e seus espetáculos serão mais surpreendentes! Essas são apenas quatro pequenas dicas em uma lista enorme de coisas, mas espero que elas ofereçam um ponto de partida interessante. Não precisamos comprometer nossos valores para que a boa improv aconteça, e não precisamos comprometer a boa improv para que nossos valores aconteçam. Então, que tipo de improv você quer fazer e como vai fazê-la? Se você é docente de improv, ou quer ser, considere a possibilidade de participar do nosso curso intensivo de quatro dias em Londres em agosto, “How To Teach Improv Inclusively” (“Como ensinar improvisação de forma inclusiva”). Trata-se de um tour prático e presencial sobre boas técnicas de ensino, orientação lateral, elaboração de exercícios, criação de programas de estudos e muito mais. Conecte-se com outras pessoas docentes, melhore sua própria prática e desfrute de uma das melhores cidades do mundo para o teatro ao vivo! Ministrado por Stephen Davidson, Monica Gaga, Katy Schutte e Tai Campbell. https://www.eventbrite.co.uk/e/how-to-teach-improv-inclusively-tickets-887161322397
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ERWIN PISCATOR
por Feña Ortalli
Erwin Piscator, nascido em 17 de dezembro de 1893, em Ulm, Alemanha, foi uma figura importante no mundo do teatro, conhecido por suas contribuições inovadoras ao teatro épico e ao drama político. O trabalho de Piscator caracterizou-se por seu compromisso com o uso do teatro como ferramenta de mudança social e pelo uso pioneiro de multimídia nas produções. Piscator começou sua carreira no teatro no início do século XX, inicialmente estudando na Universidade de Munique, antes que a eclosão da Primeira Guerra Mundial interrompesse seus estudos. Durante a guerra, ele serviu no exército alemão e foi profundamente afetado por essa experiência. Sua desilusão com a guerra e seu impacto na sociedade alimentou seu desejo de criar um teatro que abordasse questões sociais e políticas. Após a guerra, Piscator retornou a Berlim, onde se envolveu com o crescente movimento de teatro expressionista. Estreou como diretor em 1920 e logo se tornou uma figura central no cenário teatral de vanguarda de Berlim. Em 1924, fundou a Piscator-Bühne, uma companhia de teatro que ficou conhecida por suas produções ousadas e experimentais. A abordagem de Piscator em relação ao teatro foi fortemente influenciada por suas crenças marxistas, e ele procurou criar uma forma de teatro didática e destinada a inspirar mudanças sociais e políticas. Uma das contribuições mais significativas de Piscator para o teatro foi o desenvolvimento do teatro épico, um estilo no qual ele foi pioneiro ao lado de Bertolt Brecht. O teatro épico tinha como objetivo provocar o pensamento crítico e a ação social em vez de simplesmente entreter. As produções de Piscator geralmente incluíam elementos multimídia, como projeções de filmes, noticiários e outras formas de mídia visual, para criar uma experiência teatral mais imersiva e dinâmica. Esse uso inovador da tecnologia foi pioneiro e preparou o terreno para futuros desenvolvimentos no teatro e no cinema. As produções de Piscator foram notáveis por seu conteúdo político e seu foco em questões sociais contemporâneas. Sua adaptação de "The Good Soldier Schweik" (“O Bom Soldado Schweik”), em 1928, é uma de suas obras mais famosas, utilizando uma mistura de sátira e realismo para criticar o absurdo da guerra e do militarismo. O teatro de Piscator também forneceu uma plataforma para dramaturgos como Brecht e contribuiu para o desenvolvimento do teatro politicamente engajado em toda a Europa. Em 1931, a carreira de Piscator na Alemanha foi interrompida pela ascensão do regime nazista. Sua política de esquerda e sua origem judaica o tornaram um alvo, e ele fugiu para a União Soviética antes de chegar aos Estados Unidos em 1936. Em Nova York, Piscator continuou seu trabalho no teatro, fundando o Dramatic Workshop na New School for Social Research. Essa instituição tornou-se um importante campo de treinamento para muitas pessoas atrizes e diretoras de destaque. Após a Segunda Guerra Mundial, Piscator retornou à Alemanha em 1951, onde continuou a dirigir e influenciar o mundo do teatro. Ele retomou seu trabalho com o teatro épico e continuou a inovar, incorporando novas técnicas e abordando questões contemporâneas. O legado de Piscator se reflete na relevância contínua do teatro político e no uso de multimídia em produções teatrais. Erwin Piscator faleceu em 30 de março de 1966, em Starnberg, Alemanha, deixando para trás um profundo impacto no mundo do teatro. Sua dedicação em usar o palco como uma plataforma para comentários sociais e políticos, juntamente com suas técnicas inovadoras, consolidou seu lugar como uma das figuras mais influentes do teatro moderno.
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VINCENT VAN NIEUWENHUYZE
por Feña Ortalli
Normalmente não temos a oportunidade de fazer entrevistas pessoalmente. Então, quando soube que estaria em Munique com Vincent, pensei que seria ótimo fazer isso. E foi o que fizemos. Durante o café da manhã e depois de um longo e intenso fim de semana no ImproEM. Por que você improvisa? Oh, Deus. Odeio essa pergunta, porque eu também a faço muito às pessoas. Acho que, para mim, a questão não é por que improviso, mas por que ainda estou improvisando. Comecei porque queria fazer outra coisa, e permaneci nela porque não sei 100% quem sou, e a improv é a única coisa que me ajuda a encontrar pequenas partes novas de mim, boas e ruins, e é uma ótima maneira de aprender novas partes de mim também. É por isso que eu faço improv. E o que você descobriu sobre si? Ao longo do caminho, as coisas que descobri sobre mim são quanta paciência eu poderia ter, ou quanta agressividade eu poderia ter dentro de mim. As personagens que às vezes interpreto surgem do nada, e eu pensava: "Ah, eu não sabia que podia fazer isso", ou "Eu não sabia que podia fazer parada de mão", por exemplo. Às vezes, são coisas bobas como essas. Isso também me ajudou a descobrir um pouco minha identidade de gênero e minha identidade sexual, porque, depois de analisar as personagens que interpretei, pensei: por que às vezes interpreto personagens mais femininas, por que interpreto esse tipo de personagem e por que volto ao mesmo tipo de personagem? E isso me ajudou a perceber um pouco mais sobre mim, porque tendemos a fazer no palco as coisas que às vezes aspiramos ser, ou que queremos nos tornar, ou que queremos fazer mais, e foi uma ótima... Terapeutas que me atendem também acham que essa autoanálise é uma ótima coisa a se fazer. Como você descobriu a improvisação? Eu tinha um amigo que fazia improv há uns 15, 16 anos, e ele disse: "Descobri uma coisa e acho que seria algo para você". E eu disse a ele: "Isso parece ser a pior coisa do mundo. Essa coisa de improv? Não, nunca vai acontecer". E, durante seis meses, ele continuou me perguntando: "Você realmente deveria ir a uma aula", e eu continuava odiando a ideia de ter que inventar coisas na hora. Então, eu disse a ele: "Ok, eu vou a uma aula e, depois disso, você nunca mais vai falar comigo sobre essa coisa de improv". Depois, fui a uma aula e foi uma coisa muito estranha. Foi um amor à primeira vista, intenso, um momento de comédia romântica. E 15, 16 anos depois, ainda faço parte desse grupo. Compramos um clube de comédia também, então nos tornamos uma coisa, e a família escolhida ainda está lá. E esse amigo deixou a improv pouco depois de eu começar. Não era para ser para ele, mas era para ser para mim. E o que você sabia antes sobre improv? Eu não sabia nada sobre improv, porque acho que a improv não existe há muito tempo na Bélgica. A única coisa que eu conhecia era teatro, e a ideia de improvisar é algo que as pessoas conhecem, mas fazer isso como uma forma de arte me pareceu algo estranho e absurdo. E até hoje, quando digo às pessoas que faço teatro de improv, sempre tenho que explicar detalhadamente que não preparamos nada. Por que você acha que isso acontece? Acho que muitas pessoas querem ter rótulos, querem ter nomes, querem ter uma pequena tela onde tudo é colocado. Queremos dar nome a tudo, e acho que, para muitas pessoas, improvisar significa mudar muito suas ideias, e as pessoas não gostam disso. As pessoas querem saber com antecedência o que vai acontecer, porque o inesperado as assusta, e isso é o mesmo que pedir às pessoas que venham assistir a um espetáculo de teatro. As pessoas perguntam: que espetáculo é esse? Oh, é “Macbeth” de Shakespeare, ok, ótimo, eu vou assistir. Por ser algo em que você treinou, você sabe que tem que ser bom. Mas com a improv, ninguém sabe o que vai acontecer, e acho que isso assusta muita gente, porque as pessoas querem saber, querem ter uma estrutura, querem ter uma visão clara do que vai acontecer. Acho que se você for assistir a “Macbeth”, poderá ter uma ótima noite, mas acho que com a improv, se você vier com um pouco de medo de não saber o que vai acontecer, então será um ótimo espetáculo. A quantidade de felicidade, a quantidade de satisfação ou a quantidade de emoções que você sente são muito maiores e mais fortes, porque você teve aquele pouco de medo, então você tem muito mais espaço para fazer isso, e acho que é por isso que muitas pessoas que vêm assistir à improv pela primeira vez, e se elas assistem a um ótimo espetáculo, provavelmente virão muitas vezes para a improv. Pelo risco. Ao mesmo tempo, em algumas comunidades, a ideia de garantir a qualidade ou as expectativas do público depende de um determinado formato. Por exemplo, usar o formato “Teatro Esporte”, ou “Harold”, ou “Armando”, ou qualquer outro formato mais global ou famoso, também pode preparar as expectativas do público. Eu estava pensando no que você disse sobre os rótulos e isso me fez lembrar de um espetáculo que você faz com o Rainbow Warriors, chamado “Labels”. Como esse espetáculo foi criado? A ideia foi de Mark Decker. Ele é um dos fundadores da Rainbow Warriors. E a ideia foi criada porque nós sentimos que, as pessoas nos veem, nos marcam, nos rotulam e isso se torna a única coisa, a única identidade. E descobrimos que, tudo bem, somos gays, somos os Rainbow Warriors, e estamos lá para mostrar que é um grupo de improv seguro e totalmente gay. Mas isso não significa que a única coisa que somos é queer. Para mim, tem sido a mesma coisa. Na improv, muitas vezes, como eu era uma pessoa improvisadora queer, e não havia muitos sobre, - agora temos um grupo muito colorido, digamos -, mas muitas vezes, quando havia uma personagem queer, me empurravam para isso. E também era como se isso se tornasse toda a minha identidade para as outras pessoas. Tipo, Vincent, ah, sim, Vicent é gay. Mas eu sou muito mais do que isso. Essa é uma parte do quebra-cabeça de um milhão de peças, e o espetáculo foi criado para mostrar às pessoas que você pode ser qualquer coisa no mundo, qualquer personagem de improv, e ainda assim ser gay, e essa parte é linda, mas não define você. Ela faz de você quem você é. Você pode ser uma personagem pirata gay, mas o fato de você ser pirata é importante para a cena, que você vai caçar o tesouro, o fato de você ser gay pode contribuir para a cena, mas não define essa personagem pirata de forma alguma. Para mim, é como se você estivesse interpretando uma pirata mulher ou uma pirata homem ou uma pirata não binário, isso realmente não importa, a menos que você esteja transmitindo uma mensagem com isso, por exemplo, porque isso é ótimo, mas, em geral, sua orientação sexual ou seu gênero não deveria ser a única coisa que lhe define, mas é, para muitas pessoas, a primeira coisa que elas veem. E as pessoas tendem a não querer conhecer mais as pessoas. As pessoas tendem a ver alguém, tomar uma decisão e pronto. Na maioria das vezes, não preciso saber o gênero ou a orientação sexual de uma personagem. A menos que, ao interpretar uma personagem pirata homossexual, eu mostre como isso deve ter sido complicado ou estranho naquela época. Eu interpreto muitas personagens femininas, e isso se deve ao fato de eu achar que é uma energia poderosa para eu usar. Mas também tento usar personagens que estão em empregos que, na Bélgica, não seriam necessariamente associados a mulheres ou homens, às vezes. Portanto, se eu fosse interpretar uma mulher, provavelmente escolheria uma neurocirurgiã, ou a própria médica, ou a gerência, não a assistente de gerência, não a enfermeira, não a mãe. Qual foi a última coisa que você descobriu, ou o último brinquedo, ou a última ferramenta, que você disse: “ah, não tenho certeza se posso controlá-lo ainda, mas quero brincar com esse brinquedo.” Existe algo como improv em excesso. Acho que muitas pessoas improvisadoras já sentiram isso, mas não falamos muito sobre. Mas há cerca de dois anos faço seis aulas noturnas por semana e decidi dar um tempo em tudo o que é improv, porque pensei que era o amor da minha vida e, em qualquer relacionamento bom e saudável, é preciso um pouco de distância. E, há duas semanas, tivemos as preliminares do ImproEM em Munique, e eu tive dois matches muito bons com a Áustria e com a Irlanda. Mas com a Irlanda, foi o último espetáculo, foi a última noite. Eu fui tão infantil e bobo. E levou um longo tempo também. Eu também chorei um pouco depois. Fazia muito tempo que eu não sentia minha criança interior novamente, que você simplesmente esquecia que havia umas 200 pessoas assistindo você fazer as coisas mais aleatórias, e que você estava apenas olhando nos olhos da outra pessoa, rindo e fazendo algumas coisas, e então alguém assobiava, e então você percebia, oh, espere, eu sou uma pessoa adulta e estou fazendo uma apresentação. Mas também era possível ver nos rostos do público que você o levou para o seu mundo de fantasia, que também o levou para a diversão infantil. E, para mim, esse foi o momento em que me apaixonei, me apaixonei profundamente de novo pela improv, em que percebi que quero ser capaz de ser essa comédia infantil e absurda, e simplesmente quebrar a plataforma e ver até onde posso ir, até onde não posso quebrá-la, mas posso ir até perder um pouco o controle. Porque queremos controlar tudo, mas estou começando a reagir um pouco e ver até onde o caos pode me levar. Ver se existe um mundo por trás das regras que me foram dadas o tempo todo. Isso é algo que estou redescobrindo agora e talvez eu faça um pouco mais. Desculpe-me, mas vamos falar sobre futebol. Quando você sabe como jogar, quando tem experiência suficiente para controlar o cenário, temos estruturas que são fixas e funcionam. Mas estamos aqui pelo risco, queremos flertar um pouco com o caos e ver até onde posso levar esse controle ou falta de controle. E esse é um novo paradigma chamado relacionismo, que é basicamente formado por conexões efêmeras. Portanto, é bom ver que estamos, estamos nisso há tempo suficiente para que essa geração questione o paradigma criado há 70 anos com a improvisação moderna. Futebol e improv. É exatamente a mesma coisa. Estamos tomando café da manhã após as finais e a disputa do terceiro lugar [no ImproEM].
Como foi a última semana no ImproEM para você? Foi uma semana superdivertida. Foi exaustiva. Isso é algo que eu também descobri. Fiquei muito feliz em fazer o espetáculo contra a Romênia porque eu não o conhecia o elenco. E adorei tentar me conectar com ele porque é divertido e porque é uma cultura diferente. É um estado mental diferente. São pessoas diferentes. E eu gosto de tentar descobrir como, que tipo de improv você faz, para mim a improv sempre foi uma sobremesa. Sempre foi um tipo de bolo. E todo mundo sabe o que é um bolo, mas cada pessoa o faz de uma maneira diferente. Todo mundo usa ingredientes diferentes, mas, no final, ainda é um bolo. E eu adoro tentar ver qual é o sabor do bolo das outras pessoas. O que eu vou comer? Podemos combinar nossos sabores e podemos fazer essa linda mesa de sobremesas? Podemos fazer esse lindo bufê de sobremesas para o público, de modo que ele ainda possa desfrutar de tudo junto e foi superdivertido brincar com a Romênia. E fiquei muito feliz por improvisar com Harry, Christiana e Billy, que também conheço de Bruxelas. E antes do espetáculo, nós seis estávamos nas cadeiras na sala dos fundos, pensando: "Estou muito feliz por podermos improvisar em conjunto, porque eu realmente esperava que pudéssemos fazer isso". Para mim, também foi como: qual é a nossa meta? Qual é a nossa meta esta semana? É ganhar? Eu pensei: "Não, porque já ganhamos". Já estamos aqui na última semana. Não temos nada a provar a ninguém porque sabemos quem somos e o que somos. Eu estava pensando, mas o que eu quero pessoalmente? E, para mim, na final de ontem, eu estava pensando: "Quero ver quantos cartões amarelos posso receber. Quero ver até onde posso ir. Quero ver se consigo fazer com que o público faça coisas.” Sim. Até onde a pessoa da luz pode ir? E eu pensei, sim, senti que estava a forçar um pouco. Você acabou de abrir o baú da competição. Como você se sente em relação a isso? E como você acha que as outras pessoas improvisadoras se sentem em geral e durante esse torneio? Acho que depende. Quero dizer, também já vi pessoas jogando de forma competitiva nessa coisa e entendo isso porque, de alguma forma, ainda é uma competição, mas realmente depende: por que você se inscreveu? Por que você quis fazer isso? Todo mundo quer vencer. É como algo que você precisa fazer fisicamente, algo primordial. Precisamos sobreviver. Precisamos vencer. E eu também gostaria de ter sido o grupo número um. Claro, não vou mentir sobre isso. Mas temos o torneio esportivo de teatro holandês, que é sempre muito divertido. E sinto que é uma comunidade. A maioria das pessoas se apresenta apenas para estar junta, se divertir e ver até onde conseguem chegar. Mas sempre há equipes que jogam de forma muito competitiva e também deve haver um lugar e uma plataforma para essas pessoas, porque é uma forma de arte e você cria seu próprio tipo de bolo a partir dela. E também pode haver um bolo muito competitivo. Há também competições de sobremesas para ver quem tem o bolo com o melhor sabor. E qual é a linha de base para isso? Porque, durante o dia, sou uma pessoa a gerir projetos e processos e, para mim, tudo se resume aos números. Se os números dizem isso, é isso mesmo. Mas com um público, é como se fosse engraçado? Foi por isso que você votou? É porque você gosta de alguém das pessoas no palco? É porque você é daquele país? É porque você conhece o namorado, a namorada ou a parceria de uma pessoa no palco? É porque você sentiu uma emoção com a qual se identificou? É porque fizeram uma referência de que você gosta muito? Será que é porque, ah, fizeram um comentário sobre “Doctor Who” e eu adoro “Doctor Who”? Pode ser um milhão de coisas. E no início, quando comecei a fazer improv em competições, descobri que você tenta descobrir como pode mudar sua improv para conseguir votos. Mas então você está interpretando o que o público quer ver e não o que você pretendia fazer. E isso não é ruim, porque há muitas pessoas que fazem improv como um negócio, como seu trabalho. Se você faz isso de forma corporativa para atender a um público, então você tem uma certa responsabilidade econômica. Mas eu não faço isso. Não quero fazer isso. Se me pedirem, eu posso fazer isso. Mas prefiro mostrar às pessoas que esta pessoa aqui sou eu, esta é minha arte, isto é o que quero fazer, e quero que vejam que não precisam gostar, não precisam achar engraçado, não precisam concordar, mas precisam reconhecer que ninguém mais faz o que eu faço. Porque toda a gente que improviso que conheço é única, cada uma tem sua própria característica específica na improv, e isso é muito bom. Todo mundo tem seu próprio sabor de bolo de improv, e eu gosto de provar o maior número possível. E sim, sempre haverá esse elemento competitivo e, desde que não seja projetado em mim que eu precise fazer isso, sempre me sentirei confortável o suficiente para participar. Mas se eu tivesse que participar contra pessoas que jogam de forma supercompetitiva, eu também me tornaria muito competitivo, e a sensação que eu teria depois, mesmo que ganhasse, não me agradaria. Eu teria esse sentimento muito amargo de que quebrei coisas, não escutei, fiz isso só para rir, fiz isso só para ganhar, e então eu iria para casa, me recolheria para a minha cabeça, e não, eu não gostaria disso, de jeito nenhum, isso simplesmente não é minha praia.
Você mencionou algo interessante: a ideia de desenvolver algo específico, especialmente um design para um determinado público, com uma determinada mensagem, um determinado veículo. Há algum projeto ou espetáculo que você desenvolveu que seja assim? Tenho um formato em Bruxelas com o Improbubble, um mistério de assassinato chamado “Get a Clue”. Estou fazendo improvisação há tanto tempo que pensei: o que eu mais gosto na improv? Qual é o meu estilo de improv? E o que eu mais gosto é da participação do público. Acho que não é possível fazer improv sem um público, e gosto do fato de que o público não vem para assistir a um espetáculo, mas para fazer parte da experiência. Quero que todo mundo tenha um pouco de medo do tipo: "Oh, Deus, espero que não me façam uma pergunta, espero que não me peçam para fazer coisas", porque no momento em que isso acontece, tendem a entrar em pânico, e o pânico é um grande amigo. Portanto, se você orientar o público bem o suficiente, se orientá-lo, ele sempre responderá à pergunta, seguirá em frente, e a sensação que terá depois... Acho que muitas pessoas improvisadoras não conseguem mais sentir isso, porque já temos o costume de estar lá, mas para um membro da plateia, é uma sensação magnífica. Você faz parte de um trio chamado Prism. E vocês três moram em cidades diferentes. Como é trabalhar assim? É muito engraçado, porque a Bélgica é um país muito pequeno e minúsculo, e moramos no norte, que é uma parte ainda mais pequena, e moramos contra a Antuérpia, que não é geograficamente longe, mas só nos vemos no exterior, em festivais, ou quando viajamos para fazer improv. Na própria Bélgica, temos nossas próprias vidas, que são dominadas por nossa própria improv, em nossas próprias cidades, e não há muita sobreposição. Confiamos em nós - essa é a coisa mais importante - para saber que sabemos do que somos capazes e qual é o nosso estilo de improv, e somos nós três, pessoas completamente diferentes, o tipo de improv do Ben, o tipo de improv da Charlotte, o meu tipo de improv, são três coisas completamente diferentes, e isso nos torna, especificamente como um trio, único. Queríamos trazer algo que se baseasse na autenticidade e nas escolhas mais difíceis da vida, porque a Bélgica é um país de comédia pesada, se não é comédia, não é improv, mas não nos alinhamos a isso, achamos que há muita beleza e muitas coisas de improv, e tentamos. Tentamos essa coisa linda e difícil e, às vezes, nos aprofundávamos demais e tínhamos de repensar a estrutura; às vezes era muito cômico e precisávamos encontrar o equilíbrio: Mas, depois de um tempo, encontramos o equilíbrio e agora estamos em um ponto em que sinto que temos uma boa ideia geral da direção. É muito bom o que você disse sobre irmos para a terra louca da comédia ou para o plano mais sombrio e dramático e, depois de irmos para os extremos, encontrarmos essa área cinzenta que podemos explorar, e isso é algo pelo qual devemos ter gratidão. Qual é seu sonho de improv? Meu sonho de improv, Deus. Bem, há muitas coisas que ainda quero fazer. Também comecei a fazer improv solo e estou gostando muito. Foi a primeira vez que voltei a ter um pouco de estresse, o que é muito bom. Fiz um musical de 30 minutos a sós e achei fantástico. A primeira coisa que eu realmente queria fazer era tirar um ano de folga do trabalho e fazer improv por um ano enquanto viajo. Quero fazer uma grande turnê de improv, porque tenho viajado muito por causa da improv, e é uma descoberta e tanto, mesmo que não seja longe, mesmo que seja apenas em meu próprio país. A improv é tão diferente, porque é alimentada culturalmente e as pessoas têm uma formação diferente, e ela muda, porque é uma bela forma de arte de brincar e, dependendo dos traumas que você tem na cabeça, ou dependendo de qual é o seu gênero, qual é a sua orientação sexual, qual é a sua herança racial, onde você está, tudo o que o alimenta culturalmente, muda também o seu estilo de improvisação, e isso cria coisas novas. Quero fazer uma ópera improvisada. Sempre gostei de música clássica e também cantava música clássica. Quero ter uma banda completa, quatro pessoas cantoras de ópera incríveis e criar algo que realmente goste de ópera, mas também rir um pouco com ela, porque é uma forma de arte muito específica e as pessoas tendem a não gostar dela, mesmo que nunca a tenham visto. Eu adoraria fazer isso com os balcões, com os assentos de veludo vermelho, com os figurinos também, não precisa ser figurinos definidores, mas eu adoraria que todos fossem barrocos, bem neutros em termos de gênero, completamente de preto, com um acessório vermelho. Minha ideia era fazer uma ópera italiana, em que todos os papéis falantes fossem comuns, o idioma que todo mundo falasse, mas o canto fosse um italiano sem sentido. Isso nos obrigaria a mostrar fisicamente o que está acontecendo. Ok, última pergunta. Quem você acha que deveríamos entrevistar? Oh, Deus, quem você acha que devemos entrevistar em seguida? Que tal uma ideia maluca? Que tal não fazer uma entrevista propriamente dita, mas uma peça in-memoriam das grandes pessoas que fizeram da improv o que ela é hoje, e talvez entrevistar pessoas diferentes que as conheceram, que possam contar histórias sobre elas e que tenham sido suas experiências, como Keith Johnson ou literalmente todo mundo que foi avó, avô, mãe ou pai da improv, que não está mais aqui, mas que ainda merece sua entrevista na Status, mesmo que não esteja mais aqui.
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INSÓNIA
por Gonçalo Sítima
Seção coordenada por Luana Proença (luanamproenca@gmail.com)
Algumas das práticas pedagógicas comuns na América Latina que sempre me inspiraram em Teatro são as chamadas Desmontagens Cênicas ou os estudos da Genética Teatral. Uma abertura dos processos de criações onde eles são “desfeitos” parte a parte para que possamos ver como se deu a junção daquela obra. Assim, todos os meses eu vou dar espaço para grupos e artistas abrirem suas criações para uma partilha inspiradora. Se você quiser partilhar sobre o seu processo, entre em contato comigo, Luana Proença. Cardume significa um grande número de peixes, geralmente da mesma espécie, que nadam em bando (parece um grupo de improviso, não é? E é!). Este mês, Gonçalo Sítima, diretor artístico do coletivo de improvisação português Cardume, traz-nos o conto sobre o novo espetáculo que manteve o grupo desperto: “Insónia”. Manteve-o assim porque a primeira ideia mudou muito durante o processo, com todos os “Sim” que obteve. Que a partilha do Cardume (pelas palavras do Gonçalo) nos ajude a sonhar com as nossas novas criações. (O texto a seguir manteve a grafia original no português de Portugal.) INSÓNIA - Improviso para noites de inquietude
Aqui, sentado neste balcão de bar, ao som do piano de jazz e das pedras de gelo que tilintam no copo, envolto em fumo e conversas em surdina, deixem-me contar a história da criação de um formato de improviso.
Tudo começou com uma vontade pragmática: queríamos criar um espectáculo logisticamente simples. Algo intimista e ágil. Mas não foi isso o que aconteceu.
Comecemos pelas apresentações: somos os Cardume - Colectivo de Impro, um grupo de 9 pessoas improvisadoras sediado em Lisboa, Portugal. Desde 2015 que criamos e apresentamos regularmente espectáculos de improviso, predominantemente de formato longo e médio. O espectáculo de que vos falo hoje acabou baptizado como “Insónia”.
O processo de criação deste espectáculo foi uma experiência exemplar de como um espectáculo de teatro de improviso pode germinar das raízes que sustentam e alimentam a improvisação.
Estávamos em Novembro de 2023 e tínhamos acabado de remontar o nosso espectáculo de Halloween, “After Life Party”, que envolve um cenário com mobiliário pesado, vários adereços temáticos, figurinos cuidados e caracterização. O seu formato é estruturado e conjuga alguns jogos de improviso com dinâmicas mais livres. É um espectáculo com complexidade logística e formal que gostamos muito de fazer, mas que nos empurrou para um caminho diferente.
Conseguir levar público a uma sala de teatro e fazer erguer um espectáculo sem uma produtora que o apoie é uma tarefa árdua. É um trabalho que fazemos no Cardume por verdadeiro amor ao improviso. Mas a produção de um espectáculo pode muitas vezes contaminar o prazer e a disponibilidade mental para se subir ao palco e improvisar livremente.
Foi neste contexto que começámos a ensaiar a criação de um novo espectáculo que nos libertasse das pressões habituais que circundam o acto puro de improvisar em grupo. Da vontade surgiu a oportunidade.
Uma das improvisadoras dos Cardume vive num prédio que ficou com um apartamento livre. Era uma casa antiga, parada no tempo, que ficou desocupada e disponível. Era uma habitação labiríntica, com divisões pequenas, corredores, escadas subterrâneas inesperadas e uma aura de inquietude provisória.
Foi dela que surgiu a ideia de criar um espectáculo imersivo e aproveitar este “palco” inesperado que agora se mostrava disponível. Não seria necessário montar um cenário, porque a casa em si já estava mobilada. A pequena dimensão das divisões e a impossibilidade física de ter muito público (no máximo caberiam 15 pessoas a assistir em cada espaço) tornavam pouco exigente ter casa cheia.
O grupo estava decidido: iríamos desenvolver o nosso primeiro espectáculo de improviso imersivo. Dentro das memórias de uma casa que não tínhamos habitado, começámos a ensaiar e a descobrir o que poderia ser este espectáculo.
Uma pergunta central servia de força motriz: o que é esta casa e porque estamos aqui?
A cada ensaio, testávamos as propostas que cada elemento dos Cardume foi propondo. A casa seria: um último reduto num mundo pós-apocalipse; onde veríamos as histórias das famílias que a habitaram ao longo dos tempos; talvez apenas um conjunto de divisões diferentes, cada assoalhada com o seu tema ou ambiente particular.
Foi um período experimental, com muito debate, análise e onde a voz de cada pessoa se fez ouvir. Arriscámos e testámos; errámos muito e acertámos muito também. De ensaio em ensaio fomos descobrindo o que nos dava prazer, o que funcionava no grupo e o que queríamos apresentar ao público. E assim, em conjunto encontrámos o espectáculo. A casa seria a mente de uma pessoa e nós iríamos criar s seus pensamentos e processos mentais. Juntamente com o público, iríamos descobrir o que inquieta esta personagem, o que lhe tira o sono à noite. Iríamos ser a sua Insónia.
Assim que encontrámos o conceito de “entrar na cabeça” de uma personagem e criar livremente os seus pensamentos, medos, ansiedades, expectativas e memórias, a motivação e o entusiasmo subiram. A descoberta colectiva parecia finalmente ter mostrado o caminho e os ensaios em que descobrimos o "Insónia" começaram a fluir.
Sem intenção planeada, começou a surgir a dramaturgia que iria colorir esta viagem ao interior da psique humana e ao labiríntico ordenamento/caos dos pensamentos. A inspiração começou por vir do filme de terror psicológico “O Iluminado” (1980), de Stanley Kubrick, na cena em que a personagem principal, Jack Torrance, se senta no bar do hotel para desabafar com um barman e tomar uma bebida, sendo transportado para o início dos anos 20. Deixámo-nos influenciar pelo trabalho do David Lynch, na sua utilização de elementos surrealistas e simbólicos em cena. Finalmente, incorporámos elementos do filme de animação “Divertidamente”, da Pixar, onde as emoções são personificadas e assumem a condução da história a partir do interior da mente de uma criança.
Esta amálgama de referências libertou-nos das amarras da linearidade da história num contexto tão surreal como é a manifestação cénica dos processos cognitivos de uma pessoa. Emoções, sensações, ideias e estruturas mentais ganharam vida nos corpos de quem improvisa e cada história passou a ser mais fácil de encontrar e de colorir em palco.
Assim, a personagem daria por si num bar, durante a noite. Um lugar estranho, entre o real e o onírico. Nesse bar, estariam também outras pessoas que sofrem de insónia. A pessoa atendente do bar seria o sua guia e iria servir-lhe as causas da inquietação nocturna.
Já tínhamos a forma e a orientação sobre o conteúdo que precisávamos para improvisar. Estava criado o espectáculo. Mas foi então que, como em todo o bom improviso, alguém fez uma proposta…
Em pleno processo de desenvolvimento do Insónia, recebemos o convite por parte do grupo de improviso Instantâneos, para participar no ESPONTÂNEO - Festival Internacional de Teatro de Improviso. Esta era a oportunidade perfeita para apresentarmos algo inédito a um público novo.
Porém, o trabalho que tínhamos desenvolvido estava intimamente relacionado com a casa onde estávamos a ensaiar, um “palco” que nos imergia. Agora tínhamos de adaptar o espectáculo, concebido para o interior de uma casa abandonada, para um palco de teatro. Foi desta necessidade logística e fortuita que o “Insónia” se concretizou verdadeiramente.
A ideia do Bar Insónia, um speakeasy requintado e surreal, ganhou corpo e forma física. Para o cenário criámos um balcão dourado, escolhemos poltronas de veludo e mesas de madeira desiguais. Uma cantora e uma pessoa pianista de jazz dão ambiente e clientes do bar podem degustar as melhores bebidas previamente destiladas pelo público com medos, ansiedades, mudanças de vida, e outras razões para se conseguir dormir.
À vez, cada personagem senta-se ao bar e consome aquilo que lhe tira o sono: uma mudança de emprego, um problema familiar, uma viagem. O que vemos surgir, em cenas improvisadas, é a manifestação dos seus pensamentos insones. Por vezes, as personagens encontram o sossego que tanto procuram e tomam as decisões que precisam de tomar; outras, permanecem num desassossego que se prolonga noite fora.
Levámos o “Insónia” ao palco do ESPONT NEO no dia 18 de Fevereiro de 2024, sem ensaio geral, com o elenco completo de Cardume. Foi um sucesso absoluto. O público adorou, recebemos feedback muito positivo e sentimo-nos felizes pelo resultado final que tínhamos alcançado em conjunto. Estávamos artisticamente realizados.
Com a prova de que o espectáculo funcionava, já sem medo nem angústia, convertemos definitivamente o “Insónia” num espectáculo de palco, para um grande público e de logística exigente. Subverteramos completamente a premissa que nos tinha trazido até ali. Matámos a ideia, despojámo-nos do ego e adaptámo-nos em prol de um bem maior. Tudo valores e princípios que regem a nossa forma de improvisar.
E o que aconteceu à casa abandonada, devem estar a perguntar-se? Não desperdiçámos esta oportunidade e criámos um espectáculo imersivo chamado “Amnésia”. Mas isso é tema para outra garrafa, porque a noite já vai longa e o Bar Insónia vai fechar as portas.
Boa noite e bom sono, se chegar.
CARDÁPIO INSÓNIA Co-criação e Interpretação: Cardume – Colectivo de Impro. André Carvalho, André Pedro, Elsa Duarte, Gonçalo Sítima, João Filipe Ribeiro, Pedro Miguel Silva, Sara Afonso, Susana Branco e Vera Aroeira. Direcção artística: Gonçalo Sítima Músicos convidados: António Leão, João Eiró, Pedro Ramos
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ELENCO DE UMA NOITE
por Piotr Pawłowski
Há uma grande vantagem e oportunidade exclusiva dos festivais de improv. Combinar pessoas de diferentes grupos, teatros, origens, países, perspectivas artísticas - o que você quiser - e formar um elenco incrível com elas. Neste artigo, tentarei usar minha experiência - como visitante de festivais poloneses e internacionais, organizador e diretor artístico do International Improv Festival JO! em Toruń, e diretor de alguns desses espetáculos - para procurar pistas sobre o que funciona e por quê.
Antes de tudo, vamos especificar do que estamos falando aqui. A definição com a qual iniciei este ensaio pode ser aplicada a espetáculos de equipes de mistas (Mixer Teams), espetáculos de elenco principal e projetos de festivais. Vamos falar brevemente sobre os dois primeiros e depois nos concentraremos no último.
Como equipe de mista (Mixer Teams), entendo uma apresentação após o workshop no palco principal do festival. Quem participa paga pelo workshop e, com isso, ganha um espaço de tempo para mostrar o que aprendeu. Por que oferecer isso? 1. Porque se apresentar diante de um público ajuda muito no processo de aprendizagem, especialmente porque geralmente esses workshops são sobre aprender um formato específico de espetáculo. 2. Para dar às pessoas convidadas mais opções de participar ativamente do festival. Quais são os cuidados a serem tomados? Certifique-se de que as pessoas que se inscrevem nesses workshops já sejam improvisadoras experientes que proporcionarão ao público um ótimo momento. As admissões abertas às vezes permitem a entrada de pessoas novatas, que estão mais concentradas no aspecto de estar no palco do que na parte do aprendizado. Presenciei uma situação em que uma pessoa instrutora ficou horrorizada ao descobrir que seu grupo, que se apresentaria em algumas horas, estava cheio de pessoas que preferiam começar a aprender a representar cenas adequadas para duas pessoas do que qualquer um dos elementos mais elaborados do formato para o qual se inscreveram. Portanto, por um lado, a participação, por outro, proporcionar entretenimento profissional ao seu público. Equilibrar isso pode ser complicado, mas vale a pena tentar.
Agora... Elenco principal. Convide grandes artistas para serem o núcleo do seu festival, mostrarem o que fazem regularmente e se apresentarem todas as noites em conjunto, como uma equipe. Um elenco principal bem formado pode lhe proporcionar apresentações maravilhosas. Meu principal problema com essa ideia é que ela separa seu grupo de artistas em dois - o elenco principal e... bem... o outro. Se o seu objetivo é mostrar a improv como uma forma de arte democrática, provavelmente você evitará isso. No entanto, se você convidou alguns nomes importantes e quer dar a eles o máximo de tempo possível no palco, essa é provavelmente a solução mais eficaz. Há outro efeito excelente que você pode obter com o elenco principal e eu pude testemunhar isso em Bydgoszcz, no Improdrom 2024. O elenco principal era composto por pessoas convidadas internacionais e três artistas da Polônia, provavelmente não muito conhecidas do público internacional. Quando elas brilharam no palco, todo mundo pode ver seu brilhantismo. Então, promover pessoas talentosas desconhecidas? Sim, com certeza!
Outro grande desafio no desenvolvimento de um elenco principal bem-sucedido é não fazer com que ele pareça apenas formado por artistas de nível mediano de uma equipe mista (Mixer Team). Há muito planejamento envolvido - comece com espetáculos baseados em formatos simples que permitam que o elenco se entenda e apresente seus pontos fortes e, depois, quando se conhecerem, desafie-o a trabalhar em peças mais exigentes. É claro que o maior sonho da organização de festival é reunir todo o elenco principal por uma ou duas semanas antes do festival para que possa realmente formar uma equipe, mas, normalmente, com agendas pessoais exigentes e orçamentos de festivais apertados até o limite, isso simplesmente não é possível.
Finalmente - projetos de festivais. Esse é apenas um nome que estou usando para agrupar, de alguma forma, apresentações durante um festival que envolve artistas que não trabalham em conjunto regularmente. O elenco é formado apenas para se apresentar essa única vez. Pode haver vários projetos de festival em um fim de semana ou apenas um. Às vezes, eles assumem a forma de um "espetáculo final" do festival. Esse foi o caso do festival de improv polonês "Podaj Wiosło" em Gdańsk, realizado entre 2012 e 2019, e de algumas edições do meu JO! Festival em Toruń. Principal conclusão? Não coloque tanta pressão em um único espetáculo. O público espera mais dele, e então é como jogar uma moeda. Cara - todo mundo está à altura do desafio e o resultado é incrível. Coroa - bem... uma decepção. Pode até ser um espetáculo divertido e decente, mas só por causa das expectativas criadas, não é suficiente.
Aprendi muito mais observando e participando de vários desses projetos. Em primeiro lugar - Mantenha. Simples. Sério. Seu objetivo é reunir um grupo de pessoas improvisadoras talentosas e permitir que elas façam um espetáculo maior do que a soma de suas partes. Você reuniu talento suficiente para surpreender o público em qualquer circunstância. Então... deixe-as brincar e se divertir. Não as force a aprender um formato complicado nas poucas horas que antecedem o espetáculo. Há um ótimo exemplo de um dos festivais na Polônia que já se tornou uma anedota. A cada ano, a pessoa diretora artística explicava ao elenco do espetáculo final uma ideia cada vez mais elaborada sobre o que deveria ser apresentado. No final, ela ficou falando por cerca de 20 minutos e, quando terminou, houve um longo silêncio. Então, uma das pessoas artistas perguntou: "É, quanto a isso... Talvez, em vez disso, possamos começar com duas cenas de improv lentas separadas?" - que foi recebida com uma aprovação geral, seguida de um comentário "Claro, então eu entrarei na terceira parte" por uma das outras pessoas artistas mais voltadas para a improv cômica. E foi exatamente isso que elas fizeram. Duas cenas muito emotivas e verdadeiras, seguidas de uma parte cômica pastelão - e nada mais de planos. Isso se transformou não apenas em uma excelente história de formato longo, mas também em uma meta-narrativa sobre "o que acontece quando diferentes estilos de improv se encontram em um palco". Outro exemplo: o espetáculo final de maior sucesso do JO! Festival tinha como premissa "vamos apenas apresentar uma narrativa longa no gênero ficção científica".
Isso significa que os projetos do festival devem ser simples narrativas longas? Essa é uma boa solução, mas não a única. Você pode fazer muita coisa boa em cenas únicas e formatos “armandoescos”. A questão é: qual é a sua premissa? Um ótimo exemplo de um espetáculo com uma premissa clara - e uma diretora muita talentosa - foi o Babel Project no JO! 2019. Pedi a Gosia Różalska que dirigisse um espetáculo com um elenco combinado de seis artistas, cada qual usando seu idioma nativo. A ideia é simples, você provavelmente já viu isso, mas não foi isso que a tornou excelente. Gosia se concentrou em encontrar semelhanças e diferenças entre as culturas. A plateia já estava viciada nas breves discussões que ocorreram após suas perguntas - cada artista mostrando seu caráter, sua inteligência e suas histórias pessoais. Em questão de minutos, você sentia que conhecia essas pessoas. Com tudo isso estabelecido, as cenas que se seguiram foram pura alegria. Portanto, torne-o pessoal, faça-o parecer importante para artistas e público. Lembro-me de uma história de um espetáculo que estava concluindo um festival, no qual as pessoas artistas perguntaram ao público sobre sua experiência durante a semana e, em seguida, reviveram essas lembranças, resultando em um espetáculo comovente e quase íntimo.
Por fim, se você estiver organizando o festival e cuidando da direção artística, não faça tudo sozinho. Confie nas pessoas que você convidar. Compartilhe a visão delas. Você já decidiu que elas se encaixam em sua ideia de festival. Seu único trabalho é oferecer a elas oportunidades para que possam dar o melhor de si. E depois lembre-se de se divertir.
Esse é exatamente o meu plano para o JO! 2024, que acontecerá de 25 a 28 de junho. Não é preciso dizer que todo mundo está convidado, vamos nos divertir em conjunto!
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por Pamela Iturra - impro.lectora@gmail.com
Nós, pessoas improvisadoras, adoramos Jogar. Jogar é nossa linguagem, nosso treinamento e nossa atitude em relação à criação. Jogar, essa atividade naturalmente humana, tão nutritiva para nosso corpo, mente e espírito, é o foco deste livro. Ele apresenta uma análise aprofundada do jogo de cena como uma técnica de improvisação teatral que serve de base para formatos mais longos. HOJE ANALISAMOS "Long Form Short Book". Um pequeno livro sobre improvisação de formato longo baseado em jogo de cena, de Francisco Antillón Romo. PROL - CROW* Francisco Antillón é um comediante, improvisador e professor mexicano. Ele também se dedica à comédia por meio de stand-up e esquetes. Ele é autor do podcast bilíngue "Long Form Short Pod", no qual fornece ferramentas para impro de formato longo baseada em jogos. Professor da The Assembly MX, sua escola o descreve como "um nerd da improv por excelência", ele estudou com diferentes docentes e, a partir de diferentes fontes, desenvolve um amplo trabalho de compilação, integração e síntese. *[Nota da Tradução] PROL - anacronismo para: Personagem; Relação; Objetivo; Lugar. Em Inglês: CROW: Character; Relation; Objective; Where/When STATUS Este livro faz jus ao seu nome, pois é especificamente um livro curto e fácil de ler, repleto de ferramentas práticas para improvisação de formato longo. Ele operacionaliza os conceitos fundamentais de impro, explica-os em poucas palavras e dá vários exemplos e aplicações. Ele compila uma grande quantidade de informações. Contém uma quantidade imensa de referências a diferentes docentes, espaços, escolas, experiências que forjaram o conhecimento do autor. Dessa forma, desafia quem o lê a continuar investigando, trabalhando e se exercitando. O livro foi publicado em espanhol e inglês. FORMATO O texto contém seções curtas e ilustrações. Os principais conceitos são destacados e definidos à medida que aparecem. No final de cada seção, há um resumo muito claro da ideia principal e um exemplo detalhado que ilustra as ideias levantadas. 1. Ferramentas básicas para improvisação em formato longo 2. O jogo da cena 3. Formato longo baseado em jogo de cena
- Inspiração: sugestão e abertura
- Criação de situações: iniciação e construção de contexto
- Decidindo o jogo
- Como jogar o jogo: justificar, escalar e recarregar
- Apoiando o jogo, até o fim
4. Criação de um conjunto de improvisação
Apêndice: Improvisando on-line
IDEIAS-CHAVE SOBRE O FORMATO LONGO COM BASE NO JOGO DE CENA
- Há um primeiro estágio, a fase de inspiração, em que surgem a sugestão do público e a abertura do espetáculo. Há várias maneiras de gerar uma abertura: monólogo, entrevista, desconstrução, jogo de padrões, sala de estar, pintura de cena, invocação, abertura orgânica, entre outras.
- "Se quiser, aceite uma sugestão, mas torne-a sua ao reinterpretá-la. Se desejar, use uma abertura e preste atenção às ideias, detalhes e especificidades que enriquecerão suas cenas".
- Para criar uma situação cênica, a fase de iniciação e construção do contexto é fundamental. Nessa fase, podemos decidir se trabalharemos com cenas orgânicas ou cenas baseadas em premissas, o que dará uma particularidade ao trabalho. Nessa etapa, surge o jogo, que é a dinâmica interpessoal por meio da qual a premissa é explorada.
- "A iniciação é o mapa que lhe dá certeza de onde você está e para onde pode ir. Certifique-se de que o mapa seja compreensível, quer você tenha ou não seu destino definido."
- Em seguida, é necessário decidir o desenrolar da cena, encontrando nas fases anteriores aquele elemento incomum e extraordinário, seja porque é raro ou absurdo, porque é muito específico, porque é muito extremo ou porque chamou nossa atenção. O fundamental é concentrar-se em um comportamento ativo: ações ou expressões concretas, e reagir a ele.
- Uma vez que o jogo tenha sido encontrado, ele pode ser enquadrado, ou seja, chamar a atenção do elenco e do público para algo incomum de forma óbvia, gerando uma dinâmica que o faça se destacar.
- "A fórmula do jogo é sempre: inusitado + reação." "Enquadrar o incomum e a reação, desenha o mapa para toda a equipe."
- Depois de enquadrar e incorporar o jogo, nosso trabalho é justificar, dimensionar e recarregar o jogo da cena. Ou seja, uma vez que o jogo tenha sido alcançado, o jogo é jogado e levado às suas últimas consequências.
- Justificativa é a maneira pela qual a personagem racionaliza seu comportamento ou ponto de vista incomum, tornando-o razoável apenas para si mesma.
- Escalar é tornar uma cena maior do que ela é, levando um jogo às suas últimas consequências.
- Recarregar é parar conscientemente de jogar o jogo da cena para poder voltar a jogá-lo mais tarde de maneira mais eficaz.
- "Jogar o jogo é um equilíbrio entre as expectativas que geramos e a maneira surpreendente com que as confirmamos".
- A execução da cena, mesmo que seja gerada por duas pessoas improvisadoras, deve contar com o apoio de todo o elenco, seja entrando em cena, fazendo retransmissões, cortes ou cenas paralelas, dando apoio ambiental ou editando a cena.
- "Se você estiver fora da cena, seu único trabalho é prestar atenção para apoiá-la no contexto ou no jogo."
MELHORES CITAÇÕES "Jogo: repetição consistente de um comportamento ou ponto de vista que quem improvisa identificou e decidiu explorar e aumentar por meio de suas personagens... O jogo é o motor cômico da cena. Descubra o que contrasta com a realidade e brinque com isso durante o resto de sua cena improvisada." "Podemos ter um estilo particular de jogo, mais ou menos experiência em improvisação, diferentes caminhos de treinamento ou outras coisas que nos distinguem de outras pessoas que improvisam. O que realmente nos torna únicas é nosso ponto de vista, que é moldado por nossas experiências. Na improv, não é preciso inventar ou planejar previamente. Você tem, em sua maneira de ver a vida, um grande recurso que ninguém mais tem para levar ao palco. Você é suficiente". "O que você encontrou neste livro são conceitos, ferramentas e técnicas que valem muito pouco se não forem praticadas. Além disso, se você estiver apenas consumindo, praticando e estudando improv, estará perdendo experiências. Suas experiências são o que lhe tornam excepcional dentro e fora do palco. Viva e jogue".
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