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Temporada 03 - Status #169 (Julho/2025)

Com a autorização da revista internacional de improviso Status, Luana Proença e Davi Salazar traduzem e gravam em português o conteúdo mensal da revista. 

SIM, existe uma revista mensal sobre Impro que questiona e valoriza o que fazemos, E seu conteúdo é disponibilizado em português AQUI por escrito, e em áudio em nosso PODCAST no Spotify: Revista Status - PT.

A revista STATUS é publicada mensalmente e virtualmente em espanhol, inglês, italiano e francês. Informações e assinaturas: https://www.statusrevista.com/



A tradução da revista é feita em linguagem de gênero neutra, sem a identificação de gênero do sujeito das orações quando generalizado. 


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OPINIÃO SOBRE FESTIVAIS por Feña Ortalli Festivais de Impro. Aquele tempo/espaço em que o mundo real é suspenso e pessoas de todo o planeta se reúnem para celebrar uma paixão compartilhada. O que eu gosto neles? Aqui estão 10 razões pelas quais adoro festivais de impro: 1. São uma oportunidade para me encontrar com amizades que só vejo nestas situações. Algumas das minhas amizades mais próximas estão a centenas de quilômetros de distância, e compartilhar o palco, a sala de aula, o teatro ou simplesmente o tempo com elas me deixa muito feliz. 2. Permite a mim conhecer novas pessoas e descobrir novos estilos de improvisação. Quanto mais viajo, mais abro a minha mente e recebo estímulos que ainda estou a processar mesmo depois de voltar para casa. 3. São a desculpa perfeita para visitar outras cidades e culturas. Graças aos festivais de impro, tive a oportunidade de viajar pelos cinco continentes com uma vantagem fundamental: ter habitantes locais felizes por nos mostrarem seu lugar (para além dos pontos turísticos). 4. Os festivais colocam todo mundo em pé de igualdade. Quer se trate de estudantes do primeiro ano ou de pessoas veteranas de impro, durante esses dias todo mundo está 100% dedicado à nossa paixão. 5. São uma dose de humildade. É fácil pensar que somos a realeza soberana do nosso pequeno reino, mas tudo isso se desmorona quando deixamos o nosso pequeno domínio. 6. Posso apresentar o meu trabalho ao mundo. E é importante manter uma relação saudável com o nosso ego. Ir a festivais me permite mostrar o que me define como artista e como docente. 7. Networking. Ir a festivais permite fazer contatos, conhecer outras pessoas e ser conhecido. Quer fazer parte deste mundo de pouco sono e muita impro? Inscreva-se no próximo festival e viva a experiência em primeira mão. 8. Ser estudante. Com a correria e as responsabilidades do seu dia a dia, você provavelmente não tem tempo (ou vontade) de frequentar aulas. Durante um festival (também não terá muito tempo livre), você pode aproveitar para ter aulas com diferentes docentes e voltar para casa com novas ideias. 9. Falar de impro. Se eu costumo falar de impro, imaginem o que é quando estou rodeado de pessoas que compartilham a mesma paixão e entusiasmo para falar sobre isso. 10. Tudo o que não é impro. Não me interpretem mal, adoro a parte da impro; mas depois de mais de 20 anos de viagens, o que fica são os momentos compartilhados fora do palco: passeios de bicicleta, cafés da manhã e conversas intermináveis que vão para além do motivo pelo qual nos reunimos. Bem, bem... mas nem tudo são rosas, claro. Também há coisas de que não gosto nos festivais. E falarei delas em outra ocasião. ************************************************************************************* BIO SÊNECA por Feña Ortalli Sêneca (c. 4 a.C. - 65 d.C.) foi um filósofo, estadista, orador e dramaturgo romano; e a principal figura intelectual de Roma em meados do século I. O seu pai, Sêneca (Sêneca, o Velho), tinha sido famoso em Roma como professor de retórica. A sua mãe, Hélvia, era de excelente carácter e educação. Uma tia levou Sêneca ainda criança para Roma, onde foi treinado como orador e educado em filosofia na escola dos Sextii. A saúde que Sêneca sofria e, em cerca de 20 d.C., levou-o a recuperar-se no Egito. Regressando a Roma por volta dos 31 anos, iniciou uma carreira política e jurídica. Os estoicos acreditavam que o universo funciona de acordo com a razão, ou seja, por um Deus que está presente na própria natureza; e forneceram uma descrição unificada do mundo, construída a partir de ideais de lógica, física monista e ética naturalista. São atribuídas a Sêneca dez peças de teatro, das quais, muito provavelmente, oito foram escritas por ele. As peças contrastam fortemente com as suas obras filosóficas. Com as suas emoções intensas e o seu tom geral sombrio, as peças parecem representar a antítese das crenças estoicas de Sêneca. Até ao século XVI, era normal distinguir entre Sêneca, o filósofo moral, e Sêneca, o dramaturgo, como duas pessoas distintas. Destinadas à leituras e não às apresentações públicas, o tom das peças é monótono, enfatizando o lúgubre e o sobrenatural. Há discursos impressionantes e passagens do coro, mas as personagens são estáticas. As peças de Sêneca foram muito lidas nas universidades europeias medievais e renascentistas e influenciaram fortemente a dramaturgia dessa época, como na Inglaterra Elisabetana (William Shakespeare e outros dramaturgos), em França (Corneille e Racine) e nos Países Baixos (Joost van den Vondel). FONTES https://www.britannica.com/biography/Lucius-Annaeus-Seneca-Roman-philosopher-and-statesman https://en.wikipedia.org/wiki/Seneca_the_Younger *************************************************************************************

ENTREVISTA CÉDRIC MARSCHAL por Feña Ortalli


"Encontrei uma prática artística que se identificava totalmente com quem eu era"
Por vezes, basta uma coisa simples para criar uma memória que fica na mente das pessoas. Para mim, foi um capacete. Durante uma cena de um espetáculo mudo em Barcelona, aconteceu uma magia. Não consigo explicar, mas tenho a certeza que já passaram por algo semelhante. Sete anos depois, estou entrevistando uma das pessoas que me deu esse belo presente.

Como definiria Cédric numa frase? Sou um improvisador francês, residente em Estrasburgo, que tenta dar o seu melhor para tornar a improv mais conhecida e reconhecida, e fazer as pessoas felizes à minha volta. Como esses objetivos estão indo até agora? Bastante bem, na verdade! A nossa escola (e comunidade) tem crescido com uma nova turma por ano, nos últimos anos, mantendo um forte sentimento de família. A companhia está fazendo mais espetáculos profissionais todos os anos, o que significa mais em número, mas também em qualidade, passo a passo. E chegamos a novos públicos através das escolas (escolas primárias, secundárias, universidades). Este ano começamos a dar aulas de improv nas prisões! Faz parte do meu trabalho (trabalho em meio período na nossa companhia) fazer também relações públicas com instituições (cidade, estado, etc.) para as sensibilizar a todos acerca da improv e criar parcerias, para estabelecer a companhia - e a improv - como uma parceira fiável. Então, é um embaixador da impro! Que partes da técnica de improvisar considera mais interessantes para ajudar nessa tarefa? Definitivamente, nós, enquanto pessoas improvisadoras, somos boas ouvintes. Sinto isso perfeitamente quando estou interagindo com um novo contato. Ter em conta o estado de espírito da outra pessoa, sentir como reage aos diferentes projetos que estamos fazendo e quais podem ser interessantes para ela. Trata-se realmente de encontrar uma boa ligação com estas pessoas. Não estou tentando vender nada. Após uma primeira reunião, consigo sentir se vamos ter uma ótima parceria ou não. Mas também, em relação aos diferentes projetos que temos, adoro a forma como a improv pode chegar a tantos públicos diferentes (crianças, adolescentes, idosos, pessoas nas prisões, nos hospitais, etc.) e os valores que são transmitidos através dessa prática. É por isso que o meu objetivo é difundi-la o máximo possível. Todo mundo pode se beneficiar da improv, e isso fará do mundo um lugar melhor. Que benefícios a improv trouxe à sua vida? Antes de mais nada, foi assim que conheci o meu amor e a mãe do meu filho, foi assim que conheci as minhas melhores amizades. Agora é o meu trabalho em tempo integral - empregado em meio período da minha companhia, e ator e treinador a tempo parcial. Adoro o meu trabalho e trabalho com as minhas amizades, o que é fantástico. Além disso, me permitiu conhecer muitas pessoas diferentes, de horizontes diferentes, o que alargou os meus pontos de vista, aumentou a minha empatia e a minha capacidade de ouvir, e me tornou definitivamente um ser humano melhor. Ah, e também encontrei uma prática artística que se adequava totalmente ao que eu era. Eu me interessava mas nunca fui bom em esportes ou outras artes, mas aqui sinto que encontrei algo que ressoa profundamente em mim. Apenas um exemplo é o lado efêmero da improv, exatamente como na vida real. Por vezes acontece algo fantástico, outras vezes é ruim, mas é tudo temporário, e temos que apreciar ou aceitar tudo como é, naquele momento, com todas as suas imperfeições. Eu adoro isso. Os paralelos entre a vida e a improv são incríveis. Um último exemplo é perceber o que está e o que não está sob o nosso controle. Numa cena, fazemos uma oferta à nossa parceria de cena e nunca podemos saber antecipadamente qual será a sua reação. Acho isso mágico e humilde ao mesmo tempo. Embora seja verdade que a improv é efémera, quando a magia acontece, esses momentos são inesquecíveis. Lembro-me de um momento hilariante quando vi o espetáculo “Just Play” (com Dan Seyfried e Gael Doorneweerd-Perry) em Barcelona: o capacete! Sim, é verdade - as memórias ficam! O que é que recorda dessa cena? O sentimento de estupidez? (risos) A vontade de sermos mais estúpidos juntos. Sermos estúpidos juntos é o que define seu grupo Ananas & Pampamplemousse (com o Dan e o Gael). O que é que se pode dizer sobre eles? "Verdadeiramente estúpidos", eu diria! O que é que posso dizer sobre eles? Gosto muito deles. Vivemos tantas coisas juntos. É fantástico evoluirmos separadamente, mas encontrar sempre o mesmo divertimento, a mesma diversão e a mesma ligação, mesmo que tenham se passado meses. E é tão bom ter esse nível de confiança. Num mundo que normalmente não tem consciência corporal, você é uma daquelas pessoas improvisadoras que usam o corpo para jogar. Foi sempre assim? O que é que podemos dizer com o nosso corpo que não podemos exprimir com as nossas palavras? Acho que sempre foi assim, de fato, e é assim que nos conectamos, eu acho. Acho que uma coisa que adoramos no corpo é o timing - a velocidade do nosso movimento e o que isso pode significar. Mas também a interpretação na precisão do movimento. Tentamos sempre jogar uns com os outros, encontrando uma pequena fenda ou uma janela para uma má interpretação do que o outro está fazendo, para reconhecer e expandir o jogo. Isso nos diverte muito! Qual seria o seu espetáculo de impro dos sonhos? Recursos ilimitados, enlouqueça! Bem, tenho o prazer de dizer que já vivi alguns espetáculos dos sonho! Não preciso de um público enorme - por vezes sentimos que a improv merecia um grande teatro, mas na verdade adoro a intimidade de uma sala pequena. No entanto, penso muitas vezes que a improv merece uma técnica real (luzes e sons) e cenários e figurinos reais. Gosto do seu espetáculo com o Diego (“El capricho del Rei”) também por isso. Sei que não estou a responder exatamente! (risos) Há algum projeto novo do qual possa falar? Não há nada de novo este ano, mas continuamos a expandir ideias do ano passado, quando foram implementadas pela primeira vez. Para a nossa escola, fazemos um acampamento de 4 dias numa cabana no campo com 35 estudantes e 5 docentes, com um ambiente fantástico. Parte da companhia está trabalhando num Molière improvisado e estamos experimentando um novo local onde poderemos ter mais liberdade técnica. Estou preparando workshops em parceria com um hospital para o departamento de reumatologia, para ajudar os doentes a aumentar a confiança na sua capacidade de se mover e usar mais o seu corpo. Criamos um segundo posto permanente de meio período na companhia para nos ajudar a promover os nossos espetáculos de improv em locais de teatro clássico. Última pergunta, Cédric: Porque você improvisa? Porque me faz verdadeiramente feliz e me permite compartilhar essa felicidade com as pessoas à minha volta. ************************************************************************************* IMPROLISTAS A CIÊNCIA DE FAZER SUAS AMIZADES RIREM por Chris Mead Estava ouvindo o brilhante podcast “Yes Also” recentemente e tinham uma pessoa improvisadora falando sobre a ciência da brincadeira. Quero com isto dizer, a ciência de fazer rir as nossas amizades. Há algo de muito especial em ter um grupo de amizades que apoiam e elevam as nossas ideias bobas. Este não é um fenômeno reservado exclusivamente à quem improvisa - na maioria dos grupos de pessoas amigas encontramos um senso de humor compartilhado e livre que significa que rimos mais e durante mais tempo com quem conhecemos melhor. Aparentemente, cientificamente, é conhecido como ficcionalização compartilhada - ser capaz de se colocar em uma situação completamente desligada da realidade e ainda assim toda a gente concordar sem palavras que é verdade. Parece-lhe familiar? Aqui está um exemplo dos meus tempos de universidade. Vivia num apartamento alugado com minhas amizades e não tínhamos muitos pertences. Por exemplo, não tínhamos um sofá. Tínhamos uma coleção de almofadas e cobertores espalhados contra uma parede que chamávamos a zona de conforto. Não era exatamente esse nome. Tínhamos muito pouco de tudo - talheres, pratos, cadeiras, mesas - mas havia um item em que tínhamos um excedente MASSIVO. Raladores de queijo. Tínhamos um monte de raladores de queijo. Raladores de todos os tipos, formas e tamanhos. Organizávamos eles por ordem decrescente de tamanho no parapeito da nossa janela na cozinha. Sem exageros, diria que tínhamos dez deles. E a nossa ficção partilhada era que, sempre que precisávamos de ralar queijo, saíamos da cozinha e gritávamos para o resto da casa: - Alguém sabe se temos um ralador de queijo? Ao que alguém, inevitavelmente, respondia do seu quarto: - Já procurarou no parapeito da janela? Era isso. QUE PIADA BOA! Eu ficava muito feliz sempre que alguém a dizia. Sabíamos que tínhamos mais raladores de queijo do que qualquer pessoa viva. E mesmo assim fazíamos a pergunta. Cientificamente, é possível dividir a disponibilidade de uma pessoa para se envolver numa ficcionalização partilhada em cinco níveis. Nível Um Ignorar a anedota ou repudiá-la completamente Não tenho tempo para isto, tenho uma redação para escrever, Chris. Nível dois Responder literalmente Você sabe que temos dez raladores de queijo no parapeito da janela, Chris. Nível três Entender que é uma piada, rir mas não acrescentar nada Hahaha, Chris! Nível quatro Perceber que é uma piada, mas não seguir o jogo estabelecido, em vez disso inventar um modo inteiramente novo de brincar Bem, eu não tenho motivos para me “queijar” por te conhecer, Chris. Nível cinco Perceber que é uma piada e seguir as regras que foram estabelecidas para elevar ou aumentar essa piada Oh, não tenho a certeza, Chris. Já olhou no parapeito da janela? Se não tiver nenhum, podemos fazer um furando uma bandeja velha?* Gosto muito desta escala. É óbvio que o nível 5 é a melhor forma de envolvimento. Porque CONVIDA a avançar. É um grupo de pessoas que vivem de bom grado numa versão bizarra do mundo e que o tratam com absoluta sinceridade. Passei a última semana a classificar silenciosamente as minhas interações de acordo com os níveis acima referidos - porque, como se vê, digo muitas vezes coisas incongruentes e espero que as pessoas embarquem comigo. É fascinante ver quem me ignora (o meu cachorro), quem me corrige (a minha mulher), quem sorri (ninguém), quem começa a brincar de outra coisa (o meu pai), e quem se junta a mim (também a minha mulher). E a utilidade para as pessoas improvisadoras é óbvia. Porque a ficcionalização compartilhada é uma descrição perfeita do que fazemos. Se estiver num grupo de improv - diria que todo mundo nele precisa interagir no nível 5 de forma bastante consistente, certo? Ficamos presas no nível 4 mais vezes do que gostaríamos de admitir - com cada pessoa a jogar o seu próprio jogo, a seguir a sua própria história, convencidas de que são as protagonistas. A escala é ótima porque nos dá um vocabulário para falar sobre a forma como jogamos em conjunto. E assim que tivermos palavras para descrever nosso jogo, podemos discuti-lo e identificar os pontos críticos. Sim, é bom trazer um pouco de ciência para a arte de vez em quando. Especialmente se isso permitir que quem improvisa se compreenda melhor e expanda a sua própria zona de conforto pessoal. Mas não a zona de conforto da nossa antiga casa, porque, como eu disse, era uma porcaria. *Ok, este não foi o melhor exemplo, porque seguir esta modalidade específica de piada até ao nível 5 envolve FINGIR estar no nível 2 e aceitar isso de cara - mas não vou reescrever tudo agora para esclarecer. Sou um improvisador, não um comediante de stand-up. ************************************************************************************* GENÉTICAS LOVE SECRETS por Pierpaolo Buzza Seção coordenada por Luana Proença (luanamproenca@gmail.com) Algumas das práticas pedagógicas comuns na América Latina que sempre me inspiraram em Teatro são as chamadas Desmontagens Cênicas ou os estudos da Genética Teatral. Uma abertura dos processos de criações onde eles são “desfeitos” parte a parte para que possamos ver como se deu a junção daquela obra. Assim, todos os meses eu vou dar espaço para grupos e artistas abrirem suas criações para uma partilha inspiradora. Se você quiser partilhar sobre o seu processo, entre em contato comigo, Luana Proença. Quando a impro pode ser muitas coisas e ainda por cima com raízes no amor... nos segredos, ela pode ser mais interessante de ver e sentir. Tive a oportunidade de assistir a "Love Secrets" de Pierpaolo no Camberra Improv Festival (Austrália) 2023 e fui convidada para jogar com ele no Vietnam Improv Festival 2025. E foi uma oportunidade maravilhosa de conhecer um espetáculo de diferentes perspectivas. Eu diria que na minha vez foi um pouco assustador e sobrenatural, o que nem sempre é o lugar para onde eu vou, e isso foi emocionante. Uma coisa que fica como público e intérprete: a surpresa é impactante. *** LOVE SECRETS (SEGREDOS DE AMOR) A história deste formato começa em Roma, Itália, no final de 2014. Nessa altura, com a minha companhia chamada T(i)LT - Trama Libera Tutti, estávamos nos nossos 30 e poucos anos e naquilo que várias teorias psicológicas que estou inventando agora chamam de "a fase Harold Pinter". Naqueles anos, as amizades com quem crescemos casavam-se, constituíam família, enquanto nós - por razões diferentes, de formas diferentes - entrávamos e saíamos de relações instáveis em que o amor é tão apaixonado quanto conflituoso. Parecia tão fácil para as outras pessoas, mas tão difícil para nós, que, embora nunca tivéssemos pensado em voz alta, havia um sentimento comum não dito de "o que é que as outras descobriram que nós não descobrimos? Ou será talvez o contrário?" Foi daí que surgiu o fascínio pelo trabalho de Pinter. À medida em que fomos recebendo exposição a materiais como “O Garçom Idiota”, “Jogo Mortal”, “A Festa de Aniversário”, ficávamos em completa fascinação e encantamento pela forma como as personagens podiam ter conversas superficialmente mundanas, por vezes até sem sentido, enquanto no subtexto estavam a discutir entre si, tirando partido do lado sombrio das relações. Queríamos retratar um casal feliz que, por baixo da leveza superficial, tinha algo a esconder. Em outras palavras, a sociedade que se formava à nossa volta naqueles anos. Além disso, queríamos mostrar que, apesar de a sua relação não ser nada saudável, as duas pessoas gostavam realmente uma da outra, à sua maneira quebrada e imperfeita, e, juntamente com as suas feridas profundas, tinham um amor ainda mais profundo. Em retrospectiva, o que estávamos a tentar dizer é que o amor é difícil, mas o amor é real e, embora à sua maneira não convencional, pode ser mais forte do que o medo, mais forte do que a mágoa. Naquela altura, não sabíamos isso. Eu sei agora.

Voltamos então a Roma, 2014. Naquele momento, este formato tinha outro nome, eu era o diretor. Estreou no ano seguinte com Marco Masi e Federica Forb. Acho que ter passado meses na "cadeira de diretor" me ajudou a ver este formato em raio X, por isso, quando comecei a também interpretá-lo com a Federica, estava mais bem preparado para trazer essa perspectiva para o palco. E aquela sala de estar (“Love Secrets” passa-se sempre numa sala de estar) parecia a minha casa. A estrutura do formato é bastante simples. Há um casal que vive um dia normal e feliz. Estão apaixonados, sem qualquer problema à vista. Exceto, claro... há uma tigela colocada visivelmente no palco, cheia de folhas de papel com as contribuições do público; e as contribuições são a resposta à pergunta "qual é o segredo sobre si que você esconderia da sua parceria romântica?" Durante o espetáculo, sempre que sentem a inspiração, quem está atuando pega uma folha de papel, apenas uma para cada pessoa, faz uma pausa para a ler (para si), e este ato também é visível. A partir de agora as personagens têm um segredo. Durante o espetáculo terão que revelá-lo, quando e como quiserem. Assim, o cerne do espetáculo é ver como a relação será afetada quando as personagens abrirem a lata de vermes. Irão discutir? Vão ficar juntas? De que se tratam realmente os segredos? Porque é que essas coisas aconteceram e o que desencadeiam? Neste sentido, os segredos são portais para um novo nível de verdade entre as protagonistas. Vemos quão profundas são as feridas e quão profundo é o amor, e como estes conceitos estão mais interligados do que gostaríamos que estivessem. Antes de serem revelados, os segredos são insinuados e incorporados na interação. A sensação de assistir ao espetáculo pretende ser agridoce e explorar todas as emoções que existem numa relação. O início é leve, estamos conhecendo as personagens, mostramos o seu lado divertido, as suas peculiaridades, a sua forma única de estarem juntas. Depois, à medida em que avançamos e os segredos são revelados, normalmente alternamos entre o drama aberto e a comédia ácida. Sou um grande fã de dramas, adoro jogar com a verdade emocional em situações absurdas. Ambas as pessoas no palco têm defeitos, ninguém está sempre em vantagem. Interpretar uma dinâmica de vilão-vítima nunca foi interessante para nós, gostamos muito mais de indivíduos com boas intenções e sombras complicadas, tentando esta coisa muito difícil chamada amor e cometendo erros, mas unidos nesta imperfeição que ainda significa o mundo para eles. Até ao final, quando há uma resolução, e vemos onde esta noite de revelações levou as personagens. Estes são os ingredientes principais do formato; mas as quantidades podem variar imensamente, muito propositadamente. Ao longo dos anos, tive o privilégio de jogar este formato com pessoas atrizes fantásticas como a já mencionada Federica (trabalhamos em conjunto desde 2011, não há uma única coisa de improv que não tenhamos partilhado), Vero Spielt da Áustria, Desi Krsteva da Bulgária, Luana Proença do Brasil... e, a cada vez, a vibe do espetáculo foi muito diferente. Às vezes o lado divertido se sobrepõe; e até os segredos são explorados através do humor. Claro que há muita verdade emocional e vulnerabilidade, por isso a comédia pode tornar-se pouco convencional. Outras vezes, é mais romântico, e os segredos dão profundidade e camadas. Uma vez (abril de 2025, Hanói, Festival de Improviso do Vietnam), o espetáculo tomou um rumo sombrio sem precedentes, que se manteve até ao fim. Para essas personagens, a relação estava provavelmente destruída de forma irreparável, e as sugestões do público sobre os segredos criaram uma tempestade perfeita de tragédia. [Por sorte, eu estava no palco com a Luana, porque, como sabemos, ela É a tempestade (referência ao seu espetáculo a solo "Eu sou a tempestade"!] Até hoje esse é o espetáculo de Improv mais dramático que eu já fiz. Acontece, eu acho. Jogamos com o que está lá. Não tentamos mudá-lo, não tentamos consertá-lo, mas deixamos que nos mude. Isso significa que há potencial para este espetáculo ser emocionalmente desafiante? Sem dúvida. Vale a pena? Também, sem dúvida. Nunca me propus fazer da minha catarse pessoal o tema da minha Improv, porque qual seria a razão para pedir a um público que pagasse para ver isso? Mas também acho que, para que a arte seja boa, verdadeira e valha a pena, tem de ter algum significado para o seu criador. E por "significativo", no contexto de mim próprio neste espetáculo, quero dizer algo como "que me permite jogar a partir de lugares emocionalmente delicados". Estamos a ouvir o eco da palavra LIMITES nos últimos parágrafos? Sim, sem dúvida! Assim como em todos os espetáculos de Improv, no “Love Secrets” deve haver uma discussão prévia sobre os limites para se jogar em segurança umas com as outras. Limites físicos, verbais, emocionais, sinais de retirada de consentimento... tudo isto deve ser abordado não só com diferentes pessoas atrizes, mas também com a mesma em noites diferentes. Até certo ponto, isso também é válido para o público: é importante que saibam quais os temas que o espetáculo pode abordar. Então, será que os “Love Secrets” ainda são relevantes hoje, mais de uma década depois de terem sido criados? Provavelmente não cabe a mim deliberar sobre isso. O que eu sei é que continuo a me divertir com o espetáculo. Defendo que vale a pena continuar a jogá-lo enquanto houver alguém que encontre significado nele. No início era mais sobre o conflito, como magoamos involuntariamente quem amamos; agora estou mais interessado no aspecto do humor ácido e em explorar ao máximo a personagem da minha parceria de cena. Acho que o espetáculo cresce comigo e com os tempos. No passado, assistir a espetáculos como este mexeu comigo das melhores maneiras. Revelavam coisas que a Improv pode fazer, que eu não sabia que podia. Por isso, hoje vejo este espetáculo como uma parte da minha pequena contribuição para a tradição, enquanto me coloco no ombro das pessoas gigantes que vieram antes de mim. Talvez nos vejamos num espetáculo de “Love Secrets”? Se sim, gostaria de ouvir a sua opinião sobre o assunto. ************************************************************************************* IMPROLECTORA SER CRIATIVO: O PODER DA IMPROVISAÇÃO NA VIDA E NA ARTE por Pamela Iturra (impro.lectora@gmail.com) Comecei a reler este livro logo após uma grande crise na minha comunidade, um acontecimento dramático que me tirou todo o desejo de improvisar. O meu entusiasmo desapareceu, a minha espontaneidade afundou e me isolei nessa leitura. Mas, como a vida é mágica, Nachmanovitch bateu à minha porta para me lembrar que isso não era mais do que uma pausa e que o silêncio é uma parte fundamental de qualquer sinfonia. O LIVRO “Ser criativo: o poder da improvisação na vida e na arte” [título original: Free Play: Improvisation in Life and Art”], de Stephen Nachmanovitch, é um dos livros mais conhecidos no mundo da improv. Foi escrito em 1990, quando havia muito poucas publicações sobre teatro de improvisação no mundo. Talvez seja por isso que este livro, escrito por um músico e essencialmente sobre essa forma de arte, tenha tido tanta influência nas pessoas criadoras e educadoras de teatro. Foi traduzido em onze línguas e tem pelo menos quatro edições em inglês e cinco em espanhol, bem como versões em audiolivro. É um tratado sobre criatividade que explora temas como o jogo, a inspiração e a criação numa perspetiva filosófica, estética e até metafísica. Tal como outras autorias, Nachmanovitch liga a improv à vida, eo faz através das suas quatro secções principais: "Fontes", "O trabalho", "Obstáculos e aberturas" e "Frutos". Através dos seus vinte e dois capítulos, convida-nos a refletir sobre a espontaneidade, os coletivos, os erros, a confiança, a entrega, a maturidade e a vocação artística. Está escrito num tom elegante e poético, muito cativante para quem lê com uma profunda sensibilidade artística.

O AUTOR Stephen Nachmanovitch é um músico de improvisação, professor e orador sobre criatividade. Doutorou-se em História da Consciência, pelo que os seus escritos misturam conhecimentos de música, arte e improvisação com psicologia e espiritualidade. Ensinou e deu palestras em conservatórios e universidades em todo o mundo, promovendo uma visão interdisciplinar da vida e da arte em que a improvisação desempenha um papel central. Além de “Ser Criativo”, publicou “The Art of Is: Improvising as a Way of Life” (“A Arte de Ser: Improvisar com um Jeito de Viver”) em 2019. A EXPERIÊNCIA Este livro é um convite a olharmos para dentro de nós e a encontrarmos, em cada ato espontâneo das nossas vidas, a possibilidade de criar beleza. Descreve a imaginação humana como um recurso ilimitado que nos traz prazer e paz, e que podemos cultivar agindo com sensibilidade em qualquer atividade. O livro retrata uma pessoa artista ativa como alguém capaz de absorver surpresas e de as incorporar com coerência e integridade na sua criação. Fala de acontecimentos da vida que podem bloquear, fazer descarrilar ou toldar a nossa inspiração e de como podemos nos libertar deles para nos reconectarmos com a nossa autenticidade e com a própria essência das coisas. Em suma, explica em pormenor e com profundidade que a improv é muito mais do que uma técnica artística - é um caminho espiritual e psicológico que, ao permitir a expressão espontânea, revela verdades sobre quem somos e porque vivemos as nossas vidas. CINCO RAZÕES PARA O LER 1. É uma leitura essencial para o seu ser improvisador-nerd interior - especialmente se também gostar de música. 2. Lembra-nos que a improv é teatro, teatro é arte e arte é expressão humana. Por outras palavras, recorda-lhe quão profunda e complexa é a sua ferramenta de expressão - a improv - na realidade. 3. Revela novas e maravilhosas ligações entre a arte e a vida quotidiana (se não acredita em mim, veja o capítulo "Sexo e Violinos"). 4. Nos leva na viagem de uma pessoa artista, descrevendo momentos, crises e processos. E o acompanha nos altos e baixos da criação. 5. Simplesmente, pelo prazer de ler algo belo. ESPIADELA - Qual é a fonte que tocamos quando criamos? - O que é que as figuras poetas antigas queriam dizer quando falavam da musa? - Quem é a musa? - De onde vem o jogo da imaginação? - Quando é que os sons se tornam música? - Quando é que os desenhos e as cores podem ser considerados arte? - Quando é que as palavras são consideradas literatura? - Quando é que a instrução se torna ensino? - Como é que equilibramos a estrutura e a espontaneidade, a disciplina e a liberdade? - Como é que a paixão da vida da pessoa artista é codificada numa obra de arte? - Como é que nós, as pessoas criadoras da obra de arte, asseguramos que a visão original e a paixão que nos motivam são devidamente retratadas na nossa atividade criativa no momento? - Como é que nós, as testemunhas da obra de arte, descodificamos ou libertamos essa paixão quando a pessoa artista não está mais entre nós e tudo o que temos é a própria obra para ver ou ouvir, para recordar e aceitar? - O que é que se sente quando se apaixona por um instrumento e por uma forma de arte?

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